sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Feliz natal

Quem dança valsa ainda hoje? Quantas coisas existem entre o susto e a felicidade? Quanta permissão existe para extrapolar? De quanto é o tempo e quando vem a vida? A traição é crime de quem? O que acelera você, ou o que o faz indefinidamente parar?

O questionamento é a natureza mais autêntica da vida, mas a quem responde à vida? Dê uma chance a sua essência: o que te ilumina é a mesma coisa que você? Talvez seja a felicidade, a desgraça, ou um momento imprevisto do coração que o faz parar. Quantas vezes o seu coração foi assediado por uma resposta? Quantas vezes você já foi inundado por um olhar? E você, tanto quanto eu, reconhece as leis, as estações, o ritmo do amor que está disposto a dar e receber? Não existe prisão pior do que o medo de causar dor a quem nos ama. Há alegrias e sofrimentos prometidos pela vida, é verdade, mas às vezes, no entanto, a vida é por si só urgente o bastante. Nosso coração sempre nos excede porque dali surgem os espaços em que o nosso espirito respira.

Acho que eu aprendi a guardar a vida – seja ela uma moeda ou uma pérola. Seja ela um passeio, um dia ou uma pausa. Deve ser eterno o sonho de fazer alguma coisa. E eu aprendi que há muita coisa entre o céu e este lugar, que a sensualidade pode ser cafona muita fácil, que a desintoxicação vem de dentro pra fora, que há coisas completamente impossíveis de se dizer. A vida é o eterno exercício da constância, então, paciência, porque é preciso aceitar-se em tempo próprio – em que as coisas são verdadeiras no seu próprio juízo, e não no juízo dos outros. A ignorância não tem nenhum charme, a sorte não é algo que grita, a beleza não olha, só é vista.

Então a preocupação deve estar direcionada o que nos inquieta: o que inquieta você?

Porque me inquieta saber que as roupas dizem muito sobre as pessoas, que nem sempre critério pressupõe justiça, que certas coisas não são objeto de contrato, que palhaços não querem fazer rir, mas querem ser aceitos, que é preciso passar pelo rudimentar antes da chegar à poesia, que há quase uma brutalidade entre achar e ter certeza e que as pessoas são as únicas coisas do mundo que falam.

É belíssima a imagem de um corpo que não tem peso porque se sustenta pelo que sente quando diz, no instante em que diz, e torna-se imaterial quase, levíssimo, sobre tudo. Pela sutileza das coisas bonitas de verdade, eu aprendi que é por elas que devemos parar porque ai encontramos finalmente as pequenas faltas de ar que verdadeiramente nos inspiram na vida. Portanto, viver de sonhos não traz felicidade; mas sim os momentos de compaixão, racionalidade e até auto-sacrifício. Um Feliz, não só, natal.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

uma chance à essencia | 2

acho que o seu sorriso caiu sobre mim. esse sorriso, posto em mim, você reconhece? esse contorno que me caiu sobre os lábios fez surgir uma fenda na minha boca, tão prontamente, tão semelhante a forma como o seu sorriso se aprontou para mim tantas vezes. eu sorrio como você, que sorriu para mim. ontem você me contou sobre o céu azul, tão azul, você se lembra? sua intenção foi por aquela cor dentro dos meus olhos, e eu quis por o vento dentro de ti, dar-te ar. e eu te disse, tenha calma, essa era uma vida para se lembrar. e você disse em seguida: eu não estou lhe pedindo nada, eu estou apenas lhe respondendo, perguntando: e era essa uma vida para se esquecer? você também me iluminava - foi só o que eu consegui pensar.

uma chance à essência

uma carta de mim, para você, através do poeta:


aqui está a capa das coisas minhas. você também sentiu esse vento que deixou os versos conosco? eu sou uma mulher: e tu, o que és? tudo entardesse. são pássaros estes, ou são os recados que você tem me mandado? recebi suas flores, seus ombros. seus sonhos, não os recebi. a vida é um sonho. eu estou acordada. e você, como está? são olhos de coca-cola esses seus, me disseram. e eu disse, não sei, são quais olhos esses que me veem? são olhos de ver longe ou são olhos de aproximar, para que os outros vejam detalhes? entendo, não são olhos de ver a morte, nem olhos de celebrar a vida. são olhos de ti, que viveu sob a recompensa de morrer leve - de não terminar, mas de fazer tudo. aqui está a música dos ouvidos meus. você também sentiu essa chuva coalhar a água do seu choro, como fez coagular o sangue que me deixou o corpo? esse som é familiar, esse tom, esse grito feito de música. para tudo eu retorno. você está acordada? eu ainda estou aqui.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

o seu rosto, mostra ao povo

o que é importante e essencial não cai sob o crivo da injustiça. porque é tão importante e essencial pertencer a este lugar - aqui de dentro - como é viver aquilo que se é no mundo. desprender-se das coisas ruins e agarrar-se às coisas boas de lá de fora. traga-as para dentro, no próprio e no íntimo, que elas se revelarão se verdadeiramente importantes e essenciais. porque, se não couberem aqui, onde tu és o teu estado mais puro, não poderão adaptar-se em ti lá fora. não te poderão confortar na rua se não te confortarem em sua própria sala, quarto ou cabeceira. e, então sim, se for mesmo importante e essencial como diz, não cairá sobre crivo da injustiça - e será, enfim, aceito.

sábado, 18 de dezembro de 2010

à guerra

onde está a diferença entre a persistência e a batalha? na guerra, é pior para os outros. não para os que lutam, mas para os que esperam em casa, o soldado retornar. morrer na guerra não dói - é a dor atemporal da espera que causa morte. será que você vai morrer enquanto eu estou aqui fora? a minha espera tem uma dor com ela também - porque o meu corpo tem uma linha traçada bem no meio dele, tirada de uma impressão que o seu corpo, tão leve, outrora deixou em mim. fechei a porta de casa, mas não tranquei as janelas. ainda adianta, será, a brisa densa da guerra que permanece sobre a minha cabeça, tornar a varrer esses corredores vazios da sua presença em mim? e a minha presença, em ti, meu amor, como fica? há de haver regresso em toda guerra, ainda que santa, ainda que desconexa de derramamento de sangue, a simbologia da violência sorri para mim. eu ainda acredito.

Nós | 3

Eu respiro. E o fluxo de ar dentro de mim se revela nas partes minhas e expande a vida. Há vida que finalmente vejo. Agora eu tenho postura, coluna, desenho nos lábios. Agora eu tenho referida nos olhos, a cor refletida dos olhos teus. Eu sei, eu me tornei um anjo também. Eu aprendi que não é possível gostar com exceção. Eu descobri que todo o mundo tem uma pobreza dentro da própria casa. Que todo o mundo tem uma miséria ou um mistério não descoberto. Eu percebi que as escolhas doem mais do que as coisas deixadas no caminho. Eu desviei do meu caminho. Fisicamente, eu deixei o mundo – ironicamente, eu me encontro nele pela primeira vez. Eu não sinto nada agora. Eu não estou consolada pela apatia, não estou jogada, eu não me deitei. Eu não dormi, mas flutuei na crista do sono, da dor, do arrependimento, da incerteza e da morte. Eu não encontrei nada. Eu me sinto adormecer sob a neve – já impossível de sentir a morte chegar. As minhas pálpebras doem, e eu as sinto inchadas, vermelhas. O meu olho quase fecha. Eu não sei. Eu guardei a vida – fosse ela uma moeda ou uma pérola. Fosse ela um passeio, um dia, uma pausa qualquer. Escuta, além daquele assobio fino e longo que me fez reconhecer você, um violino tocando? Escuta essa música que me traz você, me carrega o corpo, e que me leva. Eu sei, não nos encontraremos no lugar em que você vive, tampouco neste lugar em que eu estou agora. Nós nos encontraremos no meio do caminho, no alto ou no mais longe daqui. Nós nos encontraremos. Eu me sinto pegar a roupa que visto e levantar. As minhas costas doem, meu amor. Os meus remédios não descem. A minha voz não sai. O meu anjo ainda dorme na cama. O meu anjo, tão calmo, disse para eu tomar o tempo e não comprimidos. Eu não consegui. Verdade, eu menti de novo. Esse anjo não era um anjo. Esse anjo era uma vida inteira. Eu me sinto uma projeção de anjo sustentado no ar com aparente imobilidade. Meu anjo diz, você paira, olha, deveras sente – e então estamos suspensos. Quão breve somos nós? Ou quão eternos? A minha dúvida não tomba para o lado da tristeza, entenda, mas ela se debruça. Eu quase danço. A minha pergunta dói mais porque é feita, e não porque corre na possibilidade de jamais ser respondida. Eu quase volto. Eu quase não me deixo ir. Eu sinto uma vida que me puxa, e outra que me canta aos ouvidos. Eu me sinto tentando somar três cadeiras e uma maçã. Em que eu acredito?


Eu não vejo a cor da primavera. Desceu sobre mim uma malha de aço, grossa, de cor cinza. Essa malha grudou na frente dos meus olhos também. Que compromisso é esse ou o quão omisso é isso? Eu vejo um desejo tão estranho e tão disforme – já tão conforme nada. Eu me perdi? Eu me lembrei. Eu me lembrei de que o tempo é que era uma coisa muito estranha. De que uma semana poderia demorar meses e um dia, acabar em horas. Quantas horas há entre nós? Quanto espaço físico ou quanto futuro? De quanto é o tempo físico?


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Nós | 2

O que eu sinto? Eu não sei, não tem nome ainda. Tem o tamanho de um gigante e a leveza bem doce de uma borboleta. Tem o tempo e tem pressa, tem pouca coisa a oferecer de imediato, mas muita disponibilidade de viver. Isso tudo não dói – eu posso mostrar a outra parte de mim – agora feita de um sorriso. Feita de você, que trouxe de volta essa parte minha. Eu sei, eu trouxe para ti uma parte sua talvez esquecida, ou cansada, ou talvez apenas morta de novo e de sono. O que eu estava fazendo, eu não sabia. Mas eu estava me movendo como um barco calmo sobre a água. Eu era um final de tarde, uma primavera inteira, um dia e todos os dias. Você é um verão inesquecível, uma manhã de inverno que se acorda com companhia. Você é o outono que caiu sobre mim, tão tomado de poesia e vida – tão cheio de milhares de cores e forma, tão infinita nos cheiros e no tempo. O importante é que eu estou bem, que você está bem, que nós estamos vivas. Há um infinito não desenhado no meu corpo também. Um desenho que me sobre dos pés até o pescoço, os braços, os dedos, as unhas e os cílios. Agora eu não sou mais breve. Há em mim uma ampulheta deitada também bem no meio dos meus olhos, nas pupilas, num lugar em que o tempo não acaba, num lugar em que as coisas não param. Ou se param, indefinidamente voltam a flutuar, e cirandam sobre nós. Nós somos eternas agora. Você está dentro de mim, derramando seu tempo e corpo – e eu estou sobre você, como envolvimento. Eu estou deitada sobre você, sente minha alma? Meu corpo se estica também. Eu sinto teu peso de corpo e respiro de alma. Agora eu tenho ar para respirar aqui.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Nós

Eu penso. E o meu pensamento vem lento e estonteante. Eu quase me atropelo. Desce por mim um pensamento dentro da contradição: eu não sei se espero. Porque penso ser essa espera complexa demais. As coisas demoram, e da demora, desmoronam as coisas. Sabe aquela martelada constante outra vez? Aquela britadeira que não para nunca? Se eu voltar às mãos para a nuca de novo, eu acabei. Eu dei um chute no tempo, numa palavra de requinte nenhum. Em nenhuma parte de mim tinha sobrado tanta verdade. Verdade, eu menti. Eu não tinha conhecido uma pessoa. Eu tinha conhecido um anjo. Teu anjo, olho para mim e digo, agora tão meu também, fez um movimento bem curto, um cumprimento tão tímido que eu tive pavor da minha euforia por um instante. Mas depois me reconheci dentro da cena, que tão breve, me incluía e me significava. A minha dor não era imprópria, entenda, mas bem própria da fala que eu tinha começado a usar. Eu já não sou mais subalterna: eu tenho voz agora. E a minha voz sai ritmada por uma fala doce e dura, azeda, feito vomito, feito alivio. Feita de mim, pelas coisas trazidas até aqui, regurgitar não dói. Não me traz dor a inaptidão de dizer – porque digo, não apenas as palavras que quero, mas a essência da intenção que desejo – dentro do mundo em que os ouvidos parecem estar tapados. Eu tenho um eco na minha cabeça, que reverbera, que tomba as paredes e que ainda queima cortinas inteiras. A minha casa, daqui de onde me vejo, não é linda. A minha casa é a casa de quem fugiu e esqueceu. A minha casa é a casa da volta – do meu regresso, enquanto menina não deixei o lar; porque enquanto mulher, abri os braços para o mundo. Eu tenho os braços do tamanho do mundo, de uma força tão imensa, que imersas estão em mim essas veias de sangue seu. Oras, anjos tem sangue correndo entre os ombros também? Esse anjo não é de lá – foi o que me disse – porque como eu, é daqui... do mundo em que as coisas ainda doem. Do mundo em que as pessoas ainda sambam, se desculpam, desafinam. Esse anjo veio do mesmo lugar de onde eu vim. Eu não dormi o suficiente, mas a minha suficiência tornou-se boa o bastante. Eu parei de completar. Eu parei de sorrir sempre que a razão do riso tinha que ser desconhecida. Eu me conheci realmente, quando deitei, quando comecei a acordar sem ter chegado a dormir. Eu criei uma coisa sem tempo ou tamanho, nem precisão. Uma coisa tão larga e estreitíssima que era capaz de passar por debaixo de uma porta e depois derrubar um prédio. Que era capaz de se enterrar sozinha, de tão viva e tão descrente, e ao seguinte instante, indefinidamente flutuar. Era uma coisa escrita para dar um norte nesse “silêncio”.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

à ana | 7

porque antes de torná-lo publico, foi torná-lo seu.



eu escuto seu coração daqui, te ouço respirar. você me deu a mão e me puxou: já não estou mais aqui. conheci a vida de verdade, passei a existir. eu posso sentir você agora. eu sinto, toco, vejo. você tem cheiro, gosto, está viva, respira. suas veias dilatam quando eu me deito, teu ombro me segura, teu corpo inteiro me abraça. é incrivel. não são tuas essas palavras, nem minhas. é nossa essa história. eu amo a nossa vida. o meu amor existe, e é você - meu amor tomou forma de mulher. meu amor eu vejo completo e para além do olho. porque se vejo os lábios, já te sinto o beijo. se vejo o corpo, já te sinto o sexo. se estou aqui, existo ai. se existo, já não penso. esse amor não me fez perder os olhos, mas me abriu para a possibilidade de ver depois de estar cego. estive cego, há anos atrás. agora tenho um ambiente sem luxo e com tudo. agora eu posso ser transparente. na nossa loucura, vivo uma interessante inteligência. você era um desfile e eu passei pela tua frente, como se somente fosse possível que nos seguíssemos, um após o outro. depois de mim, há apenas você. larguei as roupas na beira da cama, larguei os pés, soltei os braços: você me trouxe somente você. a minha idéia de ser feliz é ver você dormir e te fazer perder o sono.

sábado, 13 de novembro de 2010

eu te amo

é belissima a imagem de um corpo que não tem peso, que sustenta-se pelo que sente quando diz, no instante que diz, e torna-se imaterial quase, levíssimo, sobre tudo. porque a condição de ser bela não é aparente e as pessoas são bonitas quando a beleza lhes é dada - ninguem nasce bonito, mas torna-se. como é possivel tornar-se uma boa pessoa. você tornou-se linda. e isso é irreversivel. não sei quando foi isso, mas quando pude me dar conta, já estava linda... não importa o tempo que isso tenha demorado. acho belo tudo que posso, porque a maioria das pessoas passa batido pelas coisas bonitas. pela sutileza das coisas bonitas de verdade, é por elas que devemos parar: ai encontramos finalmente as pequenas faltas de ar que verdadeiramente nos inspiram.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

a cabine | 5

da janela poética:


é importante não se convencer com teorias vazias. ana Laura tem poucas manias. eu a conheci em um café, em um convite que ela fez. eu achava engraçada a sua forma de fumar, muito desconexa e própria. eu a conheci quando ela aceitou um café e pagou por ele. explico: ela vestia uma calça jeans de jardinagem, luvas saindo dos bolsos, uma blusa cor de café com leite bem fraco, óculos. ela me disse que não havia vasos grandes em seu apartamento, apenas uns quatro ou cinco pequenos no parapeito da janela da frente. disse que ali se intercalavam as cores: dois deles bem verdes, um amarelo – que depois eu chamaria de seus pequenos girassóis –, e um quarto de violetas bem minúsculas. eu não tive tempo, nessa vida, de cuidar de suas flores. eu tive tempo de percebê-las e só; claro, eu tinha me emocionado nas suas respostas rápidas e nos seus silêncios que duravam semanas. ana Laura é completamente difícil de esquecer – muitas vezes não por ela mesma, mas pelo que ela representa. ela era a coisa viva na qual eu tinha me apoiado. ela era uma mulher de tema coerente nas atitudes. o exercício para ela era sempre necessário. acontece que o exercício em excesso é o que se tem de mais próximo da doença. ela fazia inflexões sobre as folhas escritas bem no meio da sala – o que transformava o nosso relacionamento em uma simples questão me empatia. o seu exercício era olhar as pessoas, enquanto o meu era olhá-la: ela, a minha mulher sinopse.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

à ana | 6

insonia seria deitar-se perto ao estar longe.

deitei: não consigo dormir. penso e existo em você. são quatro e quatro da manha. perdi o sono porque pensei e não parei mais. questionei morrer. as palavras tem o poder de levar as pessoas. se digo para ana que respiro ao seu lado, então quase vejo transpiração aqui. não estou perto, mas dentro e ao redor. proximidade é para mapas, porque se me dissesse próxima, quando digo de alguém, teria de me dizer diretamente fundida a ela. confundida com ela sem saber quais foram os braços meus e quais os dela que me deixaram. acho que só nós estamos acordadas no mundo. há um silêncio incomum do mundo aqui. então eu ouço você. meu soluçar faz musica que só você escuta: só há você que me ouve agora. eu te abraço com os seus braços em mim. me sente? eu estou aí, ao teu redor, em ti, respirando.

teria que me dizer fundida sem saber quais foram os barcos que me trouxeram e quais me levaram até ela. carências são insoluveis e eu as tenho. alegoricamente, ana também as tem tão belas. abra os braços, porque vamos fazer não só um país, mas um planeta de vênus somente nosso. há um ritmo próprio que sinto, um balançar feito das palavras ditas da transcrição do que sinto que é isso. preciso de ti - de tudo, te preciso. esse rítmo é meu & teu. posso dormir somente agora que cheguei onde está e que a presença de ana deitou-se comigo. se posso pedir, peço que durma com os anjos, os mesmos anjos que trouxeram ana para mim. se sou, então somos.

se vou, então iremos juntas. a imaginação vai provocá-la sempre. imaginar é o que resgata o infinito de nós aqui. perdi a distancia e diminuí uma légua com o futuro próximo. o tempo exige tempo. era hora de puxar o futuro pelas costas que mostra e dar um salto sobre seus ombros. eu me imagino saltando sobre os ombros do futuro e me pondo bem à frente dele. não sinto a irritação de nenhum outro dia porque tudo aqui é fascinante e cerebral. eu sou o futuro dele mesmo. sou a própria ana que me tem imersa em sua perplexidade feminina e mundana. porque somos daqui, eu e ela. nosso ritmo tem pequenas imperfeições dançantes. não há nenhuma dança perfeita, há passos ineditos de quem nunca esteve aqui antes. eu tive a permissão de viver. eu sou da retração que esta vida nossa me traz e do relaxamento pleno sob o qual sou conduzida, tão perto de seus olhos, nos quais me vejo. se vejo, então vemos. porque sou a parte minha entregue a ana depois de tomada pela parte dela posta em mim. não vivi, mas depositei uma vida sobre o campo do futuro de ombros puxados. vejo vento no rosto que desconheço - e ironicamente, me conheço aqui. eu me entendo. o futuro não é algo que se alcança, mas que mergulha na experiência de hoje. no sexo da luz de fora, no beijo da luz de dentro, no eixo do feixe de luz que emana do corpo, sua parte sem matéria ou peso também me cobre. ana é linda, o que mais existe?

terça-feira, 2 de novembro de 2010

de pequena metragem

o que tinha fora que eu senti tão perto. a gente sempre imagina o que tem na janela do outro: um casal que transa, uma bicha, uma mulher que fuma. a fumaça some – tem sorte? um sinal que abre e fecha. daria para gravar duas horas de silencio aqui. um ônibus que passa com um homem velho – que o dirige. uma sala que acende ou três casas que se apagam. nenhum cão late. nenhum miado. uma menina que vomita, eu não vi. também não vi nenhum homem que a socorresse. o que tem na janela do outro que não se usa gerúndio: um homem que transa sozinho, uma mulher que fala escondido, dois bandidos – nenhum plano. um cigarro cai da mão sem vento para ser levado. o que tinha do lado de fora que eu não vi? o que tinha aqui que não tinha sido entregue? porque eu não tinha me dado por perdida, ou por sumida do mapa? um sinal que abre. eu demorei a ligar depois de uma transa na sacada. desliguei as luzes daqui mesmo, mesmo sem sono algum que me buscasse. mesmo assim, eu parti. o que tinha aqui sem ser visto?

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

prosa

de nada dava conta o pensamento. a teoria não deu conta de entender a origem da crise. da crise, a representação de certo arranjo histórico: a legitimação é importante para que as coisas não desmoronem em vinte e quatro horas. assim como a irritação, a preocupação também era prosaica, cartesiana. quais são os princípios básicos de pensar? eu renasci na crise crescente, na teoria, nos tempos opostos, no pensamento sem semelhança. até ontem, não havia filme. hoje, o sol esteve frio. porque não dava conta, o pensamento oficial, de explicar a crise. era importante que não se convencesse com teorias vazias - porque todo cuidado é pouco e toda falta de atenção se perde. a vida existe nas necessidades que se tem, na fome que se projeta, no almoço, no sexo que se faz. estava perdendo a memória íntima das coisas outra vez?

terça-feira, 19 de outubro de 2010

à ana | 5

meu amor, o meu amor:



eu estava parada a existir como mulher. e a exigir de ser mulher foi que vi ana parada logo a minha frente - a tomar toda a minha frente em velocidade. eu não vi qualquer agonia que saísse de seus olhos porque em momento algum eles pousaram sobre mim. então, tão breve que sou, pousei minhas mãos sobre as suas e deixei que os dedos meus recorressem aos dela. a sua resposta agiu sem intermédio: segurou-me a mão porque sabia que não havia pretexto de nada ali - já que todo texto dito a ela tinha se transfomado na força que ela aplicava entre meus punhos. eu vi uma eminência nela, junto a todo o espectro de seus conselhos íntimos. ana era o conjunto de decomposição de uma luz complexa - como se nela se formassem linhas de uma malha de ferro, de um imã. eu estava ligada a uma sensibilidade que registrava as mínimas variações, que reagia ao elogio. foi como se lhe dissesse: minha adimiração cresceu por você. porque caso eu não soubesse, foi como se tivesse lhe dito em seguida: eu te amo, no futuro que há hoje, nas coisas passadas que estão aqui e no amanhã que existe agora.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

as melhores coisas da vida

a minha cabeça doía muito e eu precisava contar para o mundo. não foi da bebida de ontem, entenda, mas do samba de outro dia. só há nós aonde estamos, apesar de tanta gente. estamos em contato, então eu lhe aviso que vou pular com os pés juntos. há um aperto de ontem na maquiagem de hoje. há um pouco de noite no dia - de café no almoço, de gosto no sal. eu nos dedicaria à grande exaltação colérica, ao ímpeto da valentia, do delírio e da insânia. mas acredite, eu estava tão surpesa quanto você. eu me surpreendia no verso, no discurso, na composição musical que era feita com improviso pela sua voz. a minha rouquidão crescia e eu colocava o corpo na cama, acontece que essa casa era o reino da desordem - e o seu lugar era aqui, nesse lugar finito. a minha cabeça doía porque você tinha chegado de imprevisto, mas a propósito. as festas são sempre encantos, são seduções irresistíveis. como forma disso, a retórica sua que me domina o ânimo quando ouço. há sempre a espera do dia propício. dos dias que correm, dos dias que permanecem durante semanas, de semanas inteiras. como movimento, a minha dúvida permanecia inteira - como número que não possui a fração da unidade. se isso era um defeito, eu já não soube dizer.

sábado, 9 de outubro de 2010

à ana | 4

de repente, você vem com um conjunto organizado relativo a fenômenos usuais recortados em seu objeto próprio, independente de qualquer preocupação de aplicação técnica. que poesia pode haver em uma planilha?


claro que a ciência não define nada se não houver poesia para se enxergar um rosto harmônico. dos meus defeitos, ciência de estudo da transmissão é mutável como qualquer outra. a teoria da terra era de um tapete gigante e finito em que era limitado o céu nesse plano - como um prumo único das coisas. hoje, rondamos.

eu posso virar o mundo, no rosto da harmonia, na voz orquestrada que sai dos pontos de fuga. era um rosto de portas? eu vi janela nos olhos, nos olhos vi particulares traços de cor vinho até que o olho ficasse totalmente branco. eu não perdi o tempo aqui; eu perdi as palavras da ciência para a poesia - como se dissesse que era linda, ana, e que isso bastava. acontece que não basta, porque não entendo; então o meu entendimento cria o sofrimento comigo porque a minha evolução esta em sofrer. quando há homem que lhe fala de rosto na intenção da ciência cuja presença desconheço, eu não conheci seu rosto enquanto proporção matemática, mas conheci quem era quando as pequenas imperfeições lhe tomaram e eu lhe tomei o corpo em prontidão.

a vida tinha mudado aqui. a inspiração tinha me pegado trabalhando. se há geometria ou não, já não importa; se generalizo seu rosto, perco a ciência dele - a razão dele. e a razão não diz respeito ao feminino - o que é perene, eu penso. me perco quando joga sobre o corpo a intenção de deitá-lo sobre mim. se ela perde a respiração, eu entendo que há perda significativa de tempo quando trago o cigarro na verdade plena de tê-la. há muita coisa sobre a qual a minha concordância não para. eu creio na beleza enquanto interpretação vingativa do meu intelecto sobre a arte. não pertenço, mas desejo o desejo como fonte própria da existência mais simples, do querer mais rústico. da intenção de ser cama sob corpo, de ser corpo sob mulher e de ser mulher sob outra: o romance da mulher continua outro. porque ana pertence a poesia de uma sexualidade prímária e abrangente - não sob a luz da ciência, mas sob a luz da retórica falhida do homem. porque abaixo da retórica da mulher se curva o tempo entre a vida e a morte, me curvo eu: preciso de ti, de sua voz cantada baixo, do seu encanto sobre mim, do mínino absoluto. entendo o desenho que há em volta de seu rosto, dos olhos e dos mesmo lábios finos que percebi primeiro e que entendi serem enormes no instante seguinte. não perdi o rumo, mas achei o curso. eu flui, eu desci do tempo para inventá-lo eu mesma.

a ciência abstrai a beleza - porque a beleza cobre as pessoas. então eu não me digo feliz, mas sigo o sentimento de ser feliz. porque se me dissesse feliz, teria que racionalizar a felicidade - torná-la ciência de ser feliz. e não há ciência para nós. eu me cubro sobre ela com suas partes que ficaram. eu não fui, mas eu retornei da uniformidade estranha da minha dicção; na qual estava estática, parada em mim sobre nada. já não respoderia com razão a ela, porque minha razão se esvazia e meu desvario permanece. sou extremamente anti-científica. própria de mim, das minhas utopias inventadas e não de histórias criadas a luz de fígados mortos. morri de rir, e isso me bastava na graça séria de ana, na pouca perna em mim, em seu desejo de estar dentro e fora. e portanto, como se não tivesse escrito, eu a adoro.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

pela moda menos ordinária

por que ela grita? porque grita você? entre seus panos que são roupas e suas roupas que são textos lidos por mim em um presente, cujas respostas, no mundo das trocas daqui de baixo, não lhe interessaram, os cabelos que deixaram passar a geometria dos traços retos, por curvas e inflexões as quais eu me deito - penso em qual jeito posso ter perdido no tempo em que parei para conhecer o gesto que fez a princípio e que terminou por regar sobre mim a aversão de sua figura. eu senti a vontade do vômito pela garganta - e justo eu, que fumava entre estar aqui e ali. eu também projetei o meu desejo. porque a fome eu não criei, eu incitei o desejo de comer. é claro que as coisas são extremamente relativas.

eu passei um tempo lendo e outro olhando rostos que perdi o tempo da troca mais justa: a troca de mim pela outra de botas tão pretas e densas cuja licença de ver me trouxe de volta o tempo da perseverança. digo do tempo aquilo que tem dito de mim, de pulsos tão firmes, saias tão curtas e traços tão fundos - porque eu não sabia quantos anos você tinha, mas tinha em mim uma defasagem de ano em relação, não a sua idade, mas a sua imagem velha. por que ela é velha? por que ser velha você? é por que sou tão nova, tão pequena neste corpo, tão enorme neste mundo de trocas? que intenção pouco justa pode haver nisso?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

para a ordinariedade do crime | 2

não é congruente viver na eterna insatisfação. porque a insatisfação, por si só, é incongruente. quando as coisas da vida banal ou do exercício do cotidiano se perdem, a espera pode ser ridicula quando grande demais. então, quando a conformidade lhe fizer bater os saltos finos contra o chão, você ainda me encontrará ali, como se fosse o último. porque há uma legitimidade em ser o último a ponto de que quando me deito no chão do passeio, existe um sábado inteiro que não dormiu e que passa por mim. eu era a máquina de um tempo cuja modernidade ainda não havia chegado. eu era o cheiro que não se reconhecia nos aparelhos de hoje, eu era a desconexa parte dos bronquios que adoecia. de fumante que era, eu era muito poeta também. eu pensava na doença como própria da minha alma, mas impossível do meu corpo. quando doente, eu adoecia sobre as partes que pensavam em mim - então eu tinha problemas de coração, de dor física nunca tratada. eu não tinha pedido por isso - nem para nascer com isso. acontece que no meio do caminho que eu fiz eu encontrei a possibilidade de me sentir assim. e eu fiquei.

para a ordinariedade do crime

o cinza era o intervalo do jogo, aquilo que era imóvel e morno: a primeira meia hora da briga ou os ultimos cinco minutos do sexo - então eu me desprendia. era preciso aceitar-se enquanto tempo próprio, de próprias medidas e peso. acontece que historicamente ninguém nunca seguiu um cronograma - e um encanto nunca durou muito. eu voltava às partes menores sempre. a despeito de ver alguém com algo que se deseja ter, o ciúme me atormentava - porque o descobri o avesso de mim, a minha inveja pelo meu zelo de amor que eu sentia. então, cujas pernas me prendi há tempos, perdi - e soltei os membros e não detive a queda. ao encontrar o chão, duas semanas depois, tomei café como um príncipe, ou como bêbado.

diz-se de uma coisa que pertence a todos: ser comum. acontece que comum enquanto familiar que se torna o rosto - como o crime torna-se comum à comunidade social. caso não houvesse o crime, eu desconfiaria da irregularidade de vê-la a minha frente com o rosto que se faz conjunto frente a mim de maneiras comuns e de muito valor. a maior parte era sempre o comum dos homens - o habitual dos homens, como o elogio de outros no ego, na experiencia dela em si mesma no contato de aceitação da realidade. quando torna-se comum o formato que puxam os olhos, e a projeção do rosto cai sob o crivo daquilo que se faz de forma ordinária - de qualidade já medida, mas nunca inferior. eu sentia uma alimentação cotidiana, uma musica ao passo de marcha. era preciso livrar-se do oposto depreciativo, da oratória falhida, da chatice do bom gosto.

domingo, 3 de outubro de 2010

à burrice de todo mundo

é por isso que há uma estranhesa minha quando vejo todo mundo falando ao mesmo tempo. então como pode dizer qualquer coisa de mim - sendo que não me conhece, e não consegue sequer dizer se eu lhe gosto como tal, ou tanto quando se percebe de você em mim... o que é obvio que gosto, se me conhecesse e pudesse dizer isso com propriedade. as pessoas ficam se enganando com as aparências... demais. porque na verdade ela diz que eu sou boa pessoa, sendo que sua importancia não é comigo, nem com o que sinto - mas pergunta isso para você afim de ver como é a sua reação à importancia que dá a minha postura quando você me vê. como se dissesse: eu gosto de você, mas ela... AH, ELA VOCÊ NÃO SABE. e isso todo mundo falou - e se muita gente fala, boa coisa é que nao deve ser.

a multidão é burra e nunca vai chegar lá.

ai, brasil

comprar ou alugar é sempre um pouco estranho. aos poucos, você percebe como as coisas se encaixam, e como a curiosidade das pessoas é incrível. mesmo que as coisas não estourem, nessa vida eu não duvido de nada. porque nada é absolutamente tudo também. eu peguei um leite tão morno hoje quando levantei que eu só consegui pensar, sequer dizer: meu deus, já é domingo de novo? para quem saiu de pirituba, isso pode ser demais mesmo. porque eu fui dormir na sexta-feira e acordei no domingo com dor no corpo inteiro. e com uma fome!

a outra ainda mora com ele? às vezes eu esqueço que não sei nada da vida dele. há uma diferença entre não ter consideração e sequer conhecer essa palavra. hoje em dia tudo é muito rápido - e toda aquela atenção que você deu a ela, ela mereceu. e ela ainda andava com as duas amigas - cuja cara eu gostaria de ter visto -, porque ser sem vergonha está na moda. então é por isso que as pessoas aprontam: porque não tem o retorno da sem vergonhice hoje. agora a gente começa a juntar as peças; e olha que eu sequer sabia que o parque da água branca era esse circo todo. ela nunca quis saber de casa, só de comida congelada. uma vagabunda e com a cabeça bem podre. que cafona, brasil.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

à ana | 3

dediquei à ana um texto novo, de novos termos - ou os mesmos termos de pouco uso, aos quais, há tempos não me dedicava.
eu nunca tinha visto tão longa orquestra antes.


era sexta-feira e a minha vontade pediu tantos cigarros na noite ainda cedo que caiu sobre ana a minha vontade completa. eu fiquei pensando em como eu poderia, tão breve como nunca sou, sair da minha pressão e gostá-la em apenas quatro dias? o que foram os dias, naquela hora, eu já não soube responder. ana desligou o carro com aquela mania que tinha de olhar de lado, e sua dicção cantada e seus olhos levemente fanzidos me puxaram o corpo e me seguraram pela boca inteira. o meu encantamento batia justamente nesse ponto em que, além de olhos lindos, a imensidão de olhar que ela tinha - tinha, também - muita coisa que pensava ali. eu aceitei que ela não escrevesse - acontece que a oratória é sempre imprescindível, e a oratória dela era fantástica. porque eu tinha parado para ver ana, e não somente tinha parado para beija-la. claro que no beijo podem haver pausas inteligíveis, que existem apenas na idéia; mas eu entendia isso como uma grande virtude dela: nem sempre a pausa é essencial. eu nao tive sorte com ela, eu tive a exuberância puxando minha sorte e me puxando para ela.

ana tem os lábios muito finos - como posso tê-los retratado a princípio. hoje, ela já tem os lábios muito grossos, mas da mesma delicadeza de que me lembro antes. porque agora há uma história naqueles lábios, uma história de agora. e o corpo também - que com inacreditável verdade quis segurar para não cair. tive que me agarrar à partes menores, às orelhas, aos fios soltos de cabelo, porque ficaria presa sem jeito caso não tivesse pensado nisso. apensar de que agora me pego pensando nas tolices que conversamos e na seriedade de nossos relatos emprestados. se eu contasse tudo que vejo nela, ficaria meses inteiros falando sem parar. então penso que desejo imensamente deixá-la falar antes porque suas histórias são contadas no canto de sua voz, na orquestra de sua garganta.

da mesma forma que um peso - ou uma estranhesa - tinha se abatido sobre nós daqui aonde eu estava até ela; hoje, há uma caminho de nós de lá até aqui. a vida existe na maior intensidade possivel. porque mesmo que a sensualidade admitisse muito rápido a tolice, era tão maravilhosamente disforme o corpo de toda identidade de ana enquanto mulher que eu precisava me deitar com ela - em sonho ou não. eu tinha uma pensamento híbrido em consequência disso, e me punha em sonho a construir a invenção da realidade. e eu me punha as roupas quando imaginava seu gosto - e eu me impressionava inteira. a minha impressão era enorme ao ponto que descia uma erudição sobre nossa conversa - era incrível o lugar em que chegávamos só falando. ana era uma mulher de argumentação muito doce e de uma intolerância brevíssima ao desacordo quando eu achava engraçada a sua seriedade. porque há muitas coisas ridículas na vida - e a seriedade infinitamente graciosa de ana, com certeza, não era uma delas.

domingo, 26 de setembro de 2010

a gente inventa para caber

eu tinha um desinteresse em face de alguém, ou de alguma coisa. mas que coisa era essa que me pegava os pés à noite, e me carregava durante a manhã inteira? um domingo desses me poderia fazer esquecer a tarde? que antipatia eu sentia, tão impossível de controlar como seria irracional controlar os olhos abertos por horas. eu inventei uma semana, e me faço valer dela agora. acontece que eu tinha esquecido que a invenção era de sete dias, e não de seis. eu inventei um domigo para mim sem saber do cansaço que ele me causaria. porque este sim, tão inoportuno como ela, minha impaciência, era o primeiro dia e não o último, como posso te-lo classificado agora. são dias de chuva esses primeiros dias, são dias de inventar a atenção, de consumir a atenção em nada, são dias muito frio e de calores triviais. de livros lidos inteiros, de livros emprestados e nunca devolvidos, eu passaria semanas aqui. nenhum café hoje - porque acho que hoje nem beber café eu poderia querer. há uma irracionalidade nas paredes e nos pés das mesas. eu seria doente para viver hoje, pela possibilidade de aproveitar agora, de comportar-se na vida: mas nada é possivel em um domingo. talvez eu ganhasse doces amanhã, mas isso já seria coisa para o segundo dia da minha invenção. domingo era um dia de inventar dias, porque nada mais havia para fazer nele. muita gente é assim, inegociável. um domingo é inegociável. há muita falta de acordo em um domingo.

sábado, 25 de setembro de 2010

à ana | 2

poque quando penso, meu pensamento perde a segregação do tempo. e do espaço, que tantas vezes poderia ter sido enorme, há o encolhimento - e o corpo distingue-se em meio a outros corpos. há um caminho de gente aqui.



ana pediu um copo - ou melhor, pediu logo três. houve pessoas que se juntaram a nós. penso que talvez não fosse para o meu melhor agrado que isso aconteceu - mas depois eu entendi que isso não a agradou na ocasião também. pensei que jamais sairíamos de lá porque a companhia dos outros pode ser estranha quando se quer estar sozinho, ou minimamente acompanhado. porque eu queria a companhia de ana, com a sinceridade mais estranha que eu poderia dedicar a ela, eu queria sua companhia. o mínimo de sua companhia, enquanto corpo único que era, na verdade trazia uma multidão com ela. ana era uma mulher de ser várias. e que surpresa não foi a minha quando naquele final de noite, seu corpo me levou ao carro enquanto seu beijo a trouxe para perto.

quanto tempo pode durar um espanto, chico? e quanto tempo pode durar um encantamento? as decisões que eu tomei há sete anos conseguem ficar sete anos sem que eu mexa nelas? as escolhas são para fazer com que eu volte a mim mesma, e não o contrário. então as escolhas certas normalmente são as coisas que eu não faço sempre. fazia tempo que eu não me sentia encantar. se perdi o ar, ana, penso eu já ter precisado respirar muito para chegar aqui. hoje não saio porque já me basta a saudade de ana. talvez hoje eu durma muito, porque tudo que há aqui me basta. havia mais motivos para assimilar? (...)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

à ana

porque a sexualidade do homem traz um rudimento que a mulher não tem; enquanto a sexualidade da mulher decorre de uma poesia a qual o homem não está acostumando, tampouco, entende. é preciso quantas mulheres em uma?


cheguei ali, proximo ao corpo mais próximo de mim, como quem chega de longe e se aproxima devagar. ana já falava muito. meu cumprimento caiu sobre seu rosto, depois os braços e então os seus braços, gentilmente, retribuiram a minha fala. ela disse que estava tudo bem. era terça-feira, e o tempo parecia seco. o frio dali não houve como deveria - no lugar disso, eu sentia um incomodo pelo calor. ana fez um desenho no rosto, como se houvesse uma inconformação naquilo que eu dizia. não fiquei surpresa, contudo - porque mesmo sem tê-la visto, eu já conhecia a essencia do seu discurso e agora teria que encontrar as palavras que o comporiam: e isso sim me causava muita timidez. ela era mais do que eu me lembrava. eu era aquilo que seria sempre? ana era linda.

e o que foram as horas, daquele dia, eu já não soube responder. porque eu não tinha ido até lá para esclarecer, eu tinha ido justamente para criar a dúvida, tão bela. eu me lembrava de ana, há muitos anos, em tempos cuja minha aparência não dizia nada. hoje, de roupas tão feitas do corpo que criei - ana me olha e, não simplesmente vê a mim, mas me lê, com aqueles olhos que ficam franzidos no canto... ah sim! o canto que há em sua voz, como se desenhasse o que fala para mim, e sua mania de olhar muito as coisas ao redor, ana dá peso às silabas que não teriam importancia nenhuma. então o meu encantamento batia justamente nesso ponto. porque quanta coisa poderia ter passado batida ou apanhada esse tempo todo, que tive que esperá-la chegar, sentar-se a mesa, pedir um copo para entender? o tempo é muito estranho mesmo (...).

terça-feira, 21 de setembro de 2010

um texto para cidade

um texto de verdade:

a cidade tem um barulho habitual. que vem do carro, que é da pessoa que está dentro dele. que vem do prédio, da família que almoça, mas da pessoa que janta sozinha. todo barulho é repodução do fazer de alguém. a pessoa parada tem um barulho que vem dela, que ouvido por dentro dela. o seu estômago faz barulho. a sua unha crescendo faz barulho. respirar faz barulho no silêncio - e no barulho do silêncio faz-se o ruído da surdez. a cidade é surda e tem um barulho habitual.

domingo, 19 de setembro de 2010

a cabine | 4

eu não desfiz o tempo. eu jamais teria tido a coragem suficiente para isso. a mulher que havia em mim tinha as pernas bem mais finas do que as finas pernas que eu via. e se eu sentia pena? eu sentia que via seus olhos doerem. sabe aquele calor infernal de janeiro? então, tem sido assim.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

maria, querida!

maria, foi um soco isso? ou foi um desfalque da minha inteligência por eu ter pedido a você um beijo e você, ao contrário, ter dobrado a esquina? eu me pego pensando nas roupas que você deixou aqui antes de descer para o bar. você pretende voltar? eu espero que sim.


maria, querida: quando voltar, traga dois copos - um limão já cortado - meio quilo de açúcar, uma idéia e nenhuma pressa. eu sei, chamarão seu nome ainda pela bebida que pediu e nunca tomou, pelo livros tomados e nunca lidos, pelas madrugadas sem diversão, pela cor do olho que sempre quis e nunca teve. às vezes me parece que você não quer mais nada.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

maria, tequila!

queria dizer a maria que isso não funcionaria; não dessa forma, pelo menos. que era preciso que se tivesse muita elegância na vida, mas eu ainda penso que talvez desse - daquilo - um engano engraçado. maria pediu uma dose de tequila.


eu sorri, a ocupar a sua direção e ela tratou de me olhar de volta - com pressa ou outra vez - não sei se para devolver a gentileza de ver como eu a via, ou se para destratar do meu contato, da minha preocupação platônica por ela. faz dias que maria bebe muito, então eu me preocupo com ela. há apenas um tempo, mas eu percebo que eu estou vivendo duas horas diferentes. há o tempo de vê-la drogar-se e há o tempo do meu cuidado sobre sua droga de vida. maria, tequila!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

o viés da mentira | 2

não saio, nem desato a sair; porque a permissividade da bobeira de um apaixonado é o que faz entender que a vida pode acabar rápido mesmo. porque há pressa agora. então me perdoe por ter visto você antes de ter visto a mim - eu me sinto descompletar. me perdoe pelo perdão que dei a sua covardia. e me diga, ainda? ainda há um vôo descontente aqui. se você foi embora ao primeiro desagrado, logo a beira da primeira vez cuja vez já havia sido adiada tanto, me perdoe o desvario que me causa você. e para você, de olhos tão longos e cabelos tão fundos, de sorriso ilustrativo meramente colado ao rosto, eu me ponho a falar os restos. como se fosse preciso hospedar-se na narrativa de outro: você quer ter razão, ou ser feliz?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

OITO

selecionado para o 8º CURTA SANTOS 2010, OITO. um filme de nós.


a verdade é que você só conhece uma pessoa depois de saber os remédios que ela toma. VIDEO: http://www.youtube.com/watch?v=5IkOUIIseuA.

o filme concorre na categoria da mostra competitiva OLHAR CAIÇARA UNIVERSITÁRIO, 8ª edição do curta-santos, festival de curtas metragens.
segue o link para votação: http://sat.grupoatribuna.com.br/tvtribuna/2010/curtasantos/curta_videos.asp?idVideo=19

a gente não vai durar nada assim.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

o viés da mentira

eu já não reconhecia mais as suas roupas, talvez essa fosse a minha vantagem agora. se eu soubesse, eu não teria entrado - mas agora já foi. outra vez, as coisas vinham com limites para mim. se fosse somente eu, a entrar, tudo bem. mas era qualquer um. eu não reconheci as roupas, então por isso eu tive que cumprimentá-las, como roupas novas ou como roupa nunca vista antes - de um tratamento, de uma formalidade quase estúpida. foi como homenagiar alguém que não morreu, foi cumprimentar alguém com quem se está sempre junto. eu tinha mudado, mas nunca foi algo que me mudou realmente. eu parei de ir; e de estar, também parei. eu parei no mesmo lugar do cumprimento, no lugar do balcão, da escada. eu parei há oito meses atrás de um desamor. e o desconforto pode durar muito tempo; mas já não era pior - nem maior - do que tinha sido grave. se aconteceu assim, eu não sei. mas era assim que eu me lembrava. dessa vez, era eu quem acordava e decidia não querer mais. acontece que isso era tão elaborado, tão doente... que eu imaginava: quem será que está mentindo? era uma prática do auto-engano com o prazer de abandonar a si próprio. como se fosse preciso hospedar-se na narrativa do outro: você quer ser feliz, ou quer ter razão?

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

não terminamos, ainda

há uma xicara de café, frio. um dia quente, muito tempo - um tempo seco, a garganta inflamada, uma inflamação nos nervos: eu precisava me acalmar. e claro que não seria o café a me trazer calma - ainda mais frio. eu me enchia de cafeína ainda mais para piorar tudo mesmo, alimentar a ansiedade. era a perna que não parava quieta. era aflição. se eu pudesse fugir de mim, eu o faria. porque fugir trazia um tempo externo de mim, impróprio. própria de uma conclusão minha, eu entendi que entre achar e ter certeza havia uma brutalidade. ele dizia que eu era uma mulher bruta ao sentar, ao cruzar as pernas, ao desenhar homens em paredes. o meu recheio é todo delicadeza. a carcaça era, sim, dura. mas por proteção, temia haverem homens como ele. já tinham passado tantos e nada que me causasse esse abalo. engraçado é que eu ainda não consigo ter essa certeza. achava curioso a forma como eu ficava a desenhar. eu dizia: não parece, mas eu sonho (e no meu sonho é bem a você que vejo). o certo, é que nunca digo os parênteses... espero, estava a reformar: não percebia meu recheio ser todo delicadeza. a carcaça era, sim, dura. mas por proteção. temia haver mais homens como ele. já tinham passado tantos e nada que me causasse esse abalo.eu costumava me fazer o contrário de tudo que o agradava.

e porque eu mudava tanto de opinião? eu tinha que parar de escrever assim porque me incomodavam muito aqueles buracos que eu tinha desenhado como se fossem os olhos dele. eu precisava voltar, e nessa conversa isso era possível - eu tinha que aproveitar tudo. tudo era importante. de tanto eu amar, eu já achava que ele era bonito. eu tinha só metade de um olhar para vê-lo, metade da verdade que eu contava, que eu contava comigo, ele já não sabia. corre o risco de pra mim ter sido toda essa lava e pra ele só a fumaça. é o que mais me incomoda. a impossibilidade de se ter certeza. aqueles olhos-prontos não me diziam nada. eu que dizia por eles, como marionetes.esse será o primeiro encontro dos nossos olhos nus. então eu tirei os óculos que me davam a impressão de ver demais. eu ja estava falando de mim, vê? ou lê o que lhe digo, digo, a você, e tome o tempo que lhe é seu. o café que era meu, a frieza do meu café também, tome em um gole só (a nudez dos seus olhos não me reconhece mais?).

ele me disse: tomo. olha que desconheço a razão desse impulso em fazer tudo o que você me orienta. o frio do café é o mesmo, mas o sabor diferente. será baunilha? essa doçura é sua? me pergunto agora o porquê de nunca ter provado.

escuta, além de provar. essa musica francesa que está entre eu e você. ouve essas notas sem tradução, já não importa o que está sendo dito. se você entender, explica-me. senão, estende a mão, eu a seguro comigo. o que era para ser um homem , tinha se tornado uma mulher na parede. e há muitas coisas para se imitar uma parede. eu lhe convenço? eu convenço a mim e ao meu parâmetro da partilha da escrita.

partilhamos, quase dançamos: estendo a mão e com ela a ergo. é da minha altura, compreende? nem menos nem mais. e não me diga não saber dançar. o seu corpo se move por instinto. é assim a melhor das danças.sem palavras nossas, vejo você girando até por acidente se encontrar no labirinto. e nos seus olhos míopes assisto você chegando ao centro. lá não há mais o minotauro. é só um homem.

um homem não é um homem, eu lhe disse, e uma mulher é uma mulher sempre. a minha visão turva curva-se na sua direção, vê? não sei se me dirijo a você ou ao o que, de mim, estreguei a você na dança. porque com você eu me imaginava dançando, coisa que não fazia nunca. porque eu não dançava, eu tão somente imitava uma dança - como aquele homem imitava um homem desenhado, como imitava olhos os circulos que fiz, como eu imitava você, como você era eu e como eu, já não era nada.

não terminamos?
não terminamos, ainda.



(em uma doce partilha das palavras com LETICIA SODRÉ,
http://tout-bleu.blogspot.com, 24 de agosto de 2010)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Critica da imaginação comum

O processo afeta o homem na criação e na exteriorização. Os homens são objetos das coisas que lhe são exteriores? Se a consciência de si mesmo se perde, perde-se a identidade e passa-se a pertencer à identidade do outro. A identificação é um processo também que, por sua vez, gera pertencimento. Na cultura de massa, o pertencimento acontece quando a vontade é esmagada pela vontade do todo. Então, se existe desejo de pertencimento, hoje, a cultura de massa traz uma irônica contradição; já que a massa forma-se justamente na ausência de desejo – e na produção de mercadorias que personificam esse desejo fazendo com que isso se torne uma maneira natural de existência. É imprescindível, portanto, a socialização do instinto embora se observe a aparente incapacidade diante da opção. Há estado ou instituição que educam para que o domínio seja eficaz em determinado sentido: e o resultado desta análise pode ser deficiente. Acontece que quando não se diz, a fala fica velada – e sempre vai haver um grupo ao qual isso interessa. Se a inteligência é a simples capacidade de compreensão das opções, há sentidos recalcados, permeados pela figura do aparente líder também, do aparente ídolo que resta. O conhecimento da totalidade do homem frente à incapacidade totalizante da música traz a verdadeira integridade – já que aquele que conhece mais tende a decidir melhor também. Os meios de comunicação deveriam, portanto, fazer existir um contato com o mundo imediato, junto à capacidade de amplitude da consciência do homem e do processo do contexto mental – e não o contrário.
Faz parte da história do mundo manter dentro do espectro as coisas pelas quais se tem interesse – e tudo que constrói com o homem uma unidade. O homem é fruto de sua cultura, ainda que desenraizado, “acimentado”. Mesmo no íntimo do indivíduo, a sociedade será constantemente apresentada ao homem e o homem deverá, com ela, confundir-se. Então, se há ensino da desobediência passiva, perde-se o homem em troca da massa de homens – e o processo de estímulo ao carnaval torna-se um processo quase diabólico e catastrófico, nesse sentido. Não são mais homens estes; mas, infelizmente, contam-se por milhões.
Já dentro da limitação da cultura e da civilidade do mundo, perde-se, enfim, o mundo da troca: é áspero o caminho da liberdade. Agora, talvez seja enfim o tempo de iniciar o processo inverso.

PENSO, LOGO EXISTO (RENÉ DESCARTES)

Pensar é restrito, mas já engloba um gigantesco passo na libertação – apesar de insuficiente. Então a intenção de querer completa o ato de pensar: é o homem enquanto age. E a ação pode desencadear um ato abstrato, uma abstrata fuga: a crítica. Nesses tempos de cólera coletiva a crítica talvez seja uma arma eficaz que – não só faz defender a individualidade –, mas também propõe transformação na coisa criticada. Assim, a consciência crítica depende do conhecimento de mundo que se tem. É o conhecimento que possibilita a crença, a aceitação da verdade. Se não há conhecimento, portanto, nada pode ser absoluto, ou idolatrado. As coisas tem de ser verdadeiras no seu próprio juízo – e não no juízo de outrem: daí a eliminação definitiva do culto da personalidade.

junho/2010

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

interessa?

a necessidade é preexistente. ao final, eu sabia como ela era, mas já não me lembrava de uma palavra que tinha sido dita. eu me mantinha, como uma qualquer. eu tão somente permanecia em um estato supremo de atenção, de silêncio, de inercia do resto. só há o registro do que as roupas dizem? só há o registro do que as roupas dizem - e o meu texto já tão impróprio - transformado em uma vergonha importuna, bem própria de mim. a roupa que eu uso traz uma história de mim; a roupa que eu despedaço, que eu peço, que eu tiro, me impede categorizar. sou categoria quando vestida. pois que os corpos são iguais, e belos, quando nus - quando já longe das roupas. porque eu não a conhecia, entenda. eu conhecia a sua forma de andar, de vê-la passar, eu conhecia pelo que eu enxergava da minha construção dela. estranhamente, eu já tão cheia de roupas, ouvi dizer: ela disse já me conhecer. como eu conheço alguém em tanta alegoria? eu teria que desconstruir essa personagem. eu era uma história, uma invenção, uma parte da imaginação minha. eu era um mito, uma projeção de mim nos outros. ela tinha ínfimas rugas no rosto, e um sorriso esteril e pueril. tinha uma projeção gigantesca na fala; quando ela fala, a atenção que se retém ao discurso cria imagens de texto suspensas no ar - como se eu ficasse suspensa pela boca também, pelos lábios, ou pelas palavras de alguém. eu sabia disso como uma fatalidade, um acidente, um amor que foi embora. porque nas coisas do dia a dia, a paciência se vai. sendo assim, sendo a paciência o exercício da passividade, eu teria que tornar-me - a mim mesma - dentro do presente, ao invés de ressentir o passado ou sonhar com um futuro fantástico. seria preciso destilar o ruído e ativar a passividade - o que era contraditório. então eu não vou precisar ter todas as doenças que meus pais tiveram. tudo aqui é muito incomum, eu nunca estive nesse presente. as mulheres trituram milhos há séculos.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ao descompasso

dou um passo: o que você quer que eu explique? eu tão pouco coloquei imagens em tudo que eu já tinha dito para você. de tudo que eu senti, eu vomitei esse filme. porque é o que tem passado na minha cabeça esse tempo todo; faz tempo que eu não vejo nada. e que eu vejo muito chão, faz tempo também, muitos pés, e sinto que não ando para lugar nenhum. achei que você não assistiria, depois de tanta assistência esquecida, porque eu não pedi para que você assistisse - como tantas outras vezes posso ter pedido coisas a você. eu sugeri... e agora eu entendi que é na sugestão que a gente mais pensa. nada é absolutamente pronto. eu não quero voltar para o passado, nem imaginar um futuro fantástico, porque hoje tento tornar a mim mesma, eu tento me manter no presente. é estranho, nunca estive aqui, aqui é tudo muito incomum. ironicamente, eu vivo um eterno presente hoje.




À NOSSA BOSSA (um filme experimental) _ teaser:
http://www.youtube.com/watch?v=yx2LInzwQeM

À NOSSA BOSSA (um completo filme experimental)
http://www.youtube.com/watch?v=DYNkcIdgZAI

terça-feira, 27 de julho de 2010

a intenção tem um cheiro | 2

o que é que vem de mim, eu não sei, sai de mim alguma coisa sem nome. há dias que eu sonho com a mesma coisa, alguma coisa que eu não sei o que é. eu tornei a casa, como quem retorna de uma viagem sem volta. eu voltei, mas eu não desfiz as malas ainda. eu perdi o meu tempo? eu perdi o tempo todo. eu preciso criar, para de escrever para mim. eu era uma personagem: todo mundo tinha que ser. mas que personagem ordinária não imita vida nenhuma? eu preciso canalizar a minha inteligência; mas eu não consigo. eu perco o foco; eu, mulher, eu cego, eu não falo. a minha vida não existe. eu me sinto tão triste. se o arrependimento existisse, eu o mataria. eu já morri, por isso eu tenho horror de morrer - mas na dor existe uma coisa mágica. eu não admitia a minha felicidade porque eu me inconformava com ela: feliz todo mundo poderia ser hoje. se eu fosse feliz, eu seria mais do que feliz. há tempos eu não me lembrava de ter ido dormir em uma noite de tanto silêncio. eu estava surda também.

sábado, 24 de julho de 2010

todos os textos do mundo | 5

os mosquitos.


todas as mulheres do mundo suspiravam o nome dela. diabos, alguém lhe traga água, não conseguem ver que ela está sendo queimada viva? ela está praticamente engolida pelos malditos mosquitos. malditos! malditos mosquitos. ana Laura se importa, ela se importa se sabrina está doente. se sabrina arde em febre, se toma remédio para dormir: se sabrina morre, ela se importa porque odeia vê-la com dor. é que na dor existe uma coisa mágica (mais um mosquito esmagado). é um tapa seco sobre o chão que se propaga. há o silêncio, e ao mesmo tempo tem-se nada. há dias não escrevia. estava curada do vicio? então fumava. e a fumaça substituía lentamente as palavras que lhe faltavam nos textos. uma a uma desviavam na sua frente, desinteressavam-se no ar, e no ar prendiam-se ao pensamento de ana laura: tudo aquilo não era pouco. ela era uma personagem (...) ;

a maquiagem, a cor do cabelo. o jeito de uma boneca, a imposição de uma mulher. eu sei, eu conheço, marcela também tinha sido assim. acontece que marcela não tinha tanta inscrição no corpo. ela era uma personagem. todo mundo tinha que ser.

sábado, 17 de julho de 2010

a intenção tem um cheiro

todos ficarão velhos, mas poucos envelhecerão. ela ficaria velha logo porque foi comigo que viveu toda a juventude. toda a virtude de ser moça - cujas rugas agora lhe impregnam no rosto como uma roupa fora de moda, destroçada no corpo. como poderia eu negar a injúria com que lhe agraciei tantas vezes? não me destruiu, mas me possuiu com tanto bem que todo bem que tinha já não existe mais. poderia trocar os pés do salto - porque uma mulher de salto era inecreditavelmente lindo - em tantos outros homens: eu já não contaria mais com a sua presença em mim. porque era inevitavel esse novo amor que começou pelo fim. eu precisava das coisas que começavam primeiro. eu não pegava filas pela metade, homens, mulheres pela metade. eu era inteira, e eu era a primeira sempre. ainda fora de mim, sei, seria sempre resto de outro. isso só acontece porque as pessoas se trocam muito. se não era possivel para uma alma pequena entender isso, que gigantesca alma e compaixão poderia eu exigir dela para que sua graça tivesse demorado mais tempo em mim? o samba era extremamente consolador. e eu precisava escrever para esquecer, e para ser lembrada. para ser lembrada, eu precisava escrever para esquecer e para não me fugir da cabeça o desabor de gostar tanto. eu já não poderia ir além disso. a verdade era que eu não era capaz de muita coisa. esse amor, tão irresponsavel amor, não me puxaria porque à jovem ganancia de se apaixonar somente é possivel se entregar uma vez. a paixão - ah, tão jovem paixão, - já tinha perdido a vida, afogada no lado dos amores passados, e posta de lado pela minha perpétua reticência com o futuro. eu me larguei, e surpreendentemente eu não morri. eu acordei em uma praia desnumbrante, bordando com os pés a areia, e as mãos intactas, perfeitamente limpas. eu poderia escrever para sempre assim; eu tinha todo o tempo do mundo para mim. e que abundante bondade poderia haver nisso, afinal?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 4

O CAPITULO DO PENSAMENTO:

respirou fundo, a resgatar ar de dentro do corpo, exigindo compaixão de si mesma. poderia amar james ali mesmo porque ele esperava pela reação dela. pena para ele, pensava, que segurava um agasalho e uma sacola velha com uma surpresa – ana laura odiava surpresas, mas tinha que admitir a curiosidade e a poesia que a cena trazia até ela. pensava no quanto mais ele poderia falar. diria que era linda, de novo? de novo, seria só isso? perdia o ânimo um pouco. fechou os olhos. tinha um silêncio dela que tinha sido quebrado – e o corpo trincou, rachou quase ao meio como se abrisse uma fenda no tempo, e na distância, e nos poucos passos que a mantinham afastada de james. acontece que a proximidade a qual ele parecia estar o tornava intocável também. ela pensava: entende quando você chega muito perto de alguma coisa, e o olho perde o foco do objeto? o olho dela estava incapaz nesse sentido. depois que o olho voltou ao corpo, os olhares estavam igualmente parados no outro, e brilhantes. o que acontecia era uma combinação, aquela corriqueira felicidade e a descaracterização dos maus modos – e o que era passado poderia ser qualquer coisa também. percebeu que o que tinha acontecido, todos os motivos pelos quais tinham brigado ou desistido agora, desistiam deles. os motivos desmoronavam, os argumentos, as falhas todas postas de lado por um momento. e sabrina flutuava ali por perto deles, mas paralelo a eles. porque sabrina sempre esteve ali, tantas outras mulheres como sabrina existiam – e continuariam a encontrar com eles, sabia disso. sabrina era uma espécie de margem da relação. talvez ana laura que a tivesse colocado ali, à beira – mas a posição já não parecia incômoda mais. porque ela sorria para james com aquele sorriso manso e misterioso, como quem guarda um segredo na urgência do momento de contá-lo. então era ana laura que transpunha o corpo no plano paralelo, de onde o ouvido não tinha ruído nenhum – de cima ela via james e sabrina se abraçarem na rua. sabrina sorria mesmo sabendo que ela sabia de tudo – uma mulher que não tem nada a perder não faz esforços. porque sabrina não tinha dia para morrer. então porque não? porque não james ao invés de qualquer outro homem? acontece que na descrição das mãos dadas, tinha que ser james porque tinha também que ser ana laura. e tinha que ser ana laura de james. ana laura era a melhor candidata. porque a repulsão que ela sentia por ele, gerava – na outra – desejo. a proporção das coisas tinha uma intenção também. e aquelas personagens divididas em centenas de partes minúsculas pulavam de história em história – representando, ou dominando cada uma delas. muitos dos receios de ana laura tinham se transformado em pequenas percepções do instante seguinte. ela teria que saber das possibilidades na espera. foi como se tivesse colocado dezenas de perguntas organizadas em fila, por ordem de tamanho e importância. e os questionamentos exigiam postura dela – uma postura simples e conjunta. porque se james percebesse a fila, pegaria suas metades na rua, como uma mulher que busca o vestido no chão, ergue a saia até o joelho e corre. ela pensava qual imaturidade da condição humana envolvia isso. porque james correria para lados opostos: de um lado a broa quente, do outro, a culpa do fim do relacionamento. por todo o corpo, a omissão que o corpo tinha posto tantas vezes à mostra. e todo aquele sentimento de uma missão não-cumprida; tinham as coisas mal resolvidas ainda. havia vômitos ainda, saídas precipitadas, deixadas de lado por eles. há tempos não pensava sobre isso.

(26 de junho de 2008)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 3

O CAPITULO DA VOLTA DE JAMES:

desejava ir embora. queria ir embora para longe com ele até aquele lugar sereno em que ele se sentia bem. porque agora o efeito do remédio, do chá, do cuidado todo em relação ao resfriado eram necessários. se os defeitos agora a humanizavam, e ela admitia o refúgio. porque ela estava disponível e ele se sentia perdido. já haviam feito aquilo tantas vezes antes, mas dessa vez em particular, não sabia porque beija-la: o desejo tinha perdido significado também. não sabia em que lugar segurar o corpo, nem em que lugar soltá-lo. porque o que lhe ocorria era um desconforto em ralação ao corpo do outro. e ele lhe parecia imóvel: igualmente sem jeito. já havia comentado sobre isso antes, mas não havia recebido nenhum detalhe também. então voltou à mão mais uma vez, como se tivesse ganhado mais um pouco de confiança. estava certa daquilo – e estava certa da CONDIÇÃO que a situação tinha colocado, finalmente. ana Laura passou os braços de james em volta de sua cintura e curvou-se ou pouco para trás enquanto o corpo dele tomava espaço. a proximidade do corpo todo logo tomou o conjunto todo também: as pernas, as juntas as bocas perderam distância na sala. passou a sentir a respiração dele sendo retomada e o ar quente que deixava seu corpo fazia o corpo inteiro dele ganhar calor também. james segurou o corpo dela com força, a fim de não deixa-la perceber que tremia um pouco. ambas as mãos estavam geladas – talvez todo calor já tivesse sido trocado. ana Laura aproximou um pouco o rosto e deixou que uma pequena fenda caísse sobre os lábios. pensou em dizer algo, mas desconhecia a razão daquilo tudo. porque a situação falava por eles. e a situação gritava e imperava por seus corpos juntos, justos, sobrepostos um ao outro. o beijo dele que veio em seguida tomou-lhe a boca em surpresa. talvez não tivesse mais lábios para aquela paixão. o corpo curvou-se mais e ele praticamente a ergueu pelos braços. o corpo dela deixou um suspiro e um respiro longo depois. o fim do encontro das mãos ou do deixar dos olhos no chão tinha acabado – para a entrega do corpo não há reversão. se o amor fosse de fato uma guerra, não lutaria mais. porque tinha largado as forças ali, tinha deixado as forças no outro. fizeram amor como quem faz do amor-próprio um desapego.

james a deitou e em seguida deitou-se sobre ela. seu corpo a cobria como um cobertor, como uma capa pública daquele corpo. o pulso do coração acompanhava um ritmo igualmente descompassado. estavam postos um ao outro. era como se ela tivesse nadado muito, e agora conseguia deitar-se com ele e contemplar. agora poderia abrir os braços na praia, ou flutuar indefinidamente. a alma que emergia do corpo talvez fosse uma onda fina, uma nova onda. a alma era um segmento de conquista do outro. oara James, a boca era o topo do corpo – o gargalo do corpo do outro. estavam deitados feito uma fração – e o que pertencia a ele já não lhe admitia exclusiva posse: e ela se deixava para ele com igual confusão. o que acontecia era que os corpos tinham adquirido uma forma única – e não havia dimensão suficiente para estabelecer o começo do corpo dela e o final do de james. era apenas um par de olhos e de pernas. apenas dois braços e centenas de dedos. apenas eles.

(03 de julho de 2009)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 2

O CAPITULO DA FAMILIA DE SABRINA:


os pais de sabrina ainda moravam na mesma casa em que ela e os irmãos tinham sido criados. os mesmos móveis, quadros, sofás e talheres. as mesmas cadeiras, toalhas, sandálias e frigideiras. a mesma árvore do lado de fora, ainda seca e sem frutas. mamãe estava doente desde quando a visitara, no ano passado. sabe-se lá o que tinha, mas o mal deveria estar se arrantando pelos meses e ela parecia estar acostumada aos remédios e a sensação ruim que eles traziam. sabrina evitava voltar para visitá-la - não por mamãe, em si, mas pela falta de graça das lembranças que ainda existiam ao redor da casa. queria trazê-la para se tratar na capital, lógico que queria, mas mamãe se recusava. então sabrina evitava visitas porque assim evitava ser convidada para morar com eles outra vez. se continuasse indo uma vez a cada dois meses, como fazia no começo, eles iriam sugerir para que ela voltasse. e quem insistia era papai - afinal mamãe já mal saía do quarto. papai estava aposentado há oito anos, mas tinha voltado a trabalhar por mais dois quando sabrina resolveu se mudar para a capital. era a única filha, afinal, a única filha menina. os outros poderiam seguir por conta própria, mas sabrina não: ah, não sabrina! sabrina era independente, não exercia profissão nenhuma, fazia a própria comida. nem sempre os pais entendem isso. lavava as próprias roupas, enquanto os irmãos tinham empregados até para dobrar as pontinhas do papel higiênico. esse tipo de hábito era esquisito demais, pensava. jamais conseguiria ter alguém para lhe servir o jantar. não se imaginava jantando com oito tipos diferentes de talheres. gostava de comer alguma coisa na sala, com um pano fino no colo - que ela mesma tinha bordado naquela única aula que tinha feito - e só. então dentro do seu apartamento apenas cabia ela mesma. cabia perfeitamente sabrina e ninguém mais para ficar circulando por ali. bastava james que dormia uma vez e outra. bastava ingrid. bastava os montes de roupas que tinha. então, dentro dela, bastava seu gosto pouco refinado. é, nem sempre os pais entendem isso.

(26 de junho de 2008)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

todos os textos do mundo

O CAPÍTULO DO BAR:

tinha chegado ao limite. tinha chegado ao fim, se é que o fim poderia ter essa cara de cansaço. o espaço do mundo tinha se tornado um espaço muito pequeno para o relacionamento com ele. como uma figura da firmeza, desapontava como uma folha de papel árida, e se esmigalhava seca e sem ar? sem água e sem prazer: já não tinha mais nada. essa cena, da paisagem alienígena, continuou por intermináveis minutos até que ela esticou o braço, sem jeito, para pegar uma bebida. encheu o copo igualmente imóvel de um movimento impróprio, quase a transbordá-lo. o bar ficou vazio e escuro: sobre ela, uma importuna luz do teto já tão baixo a lhe incomodar a cabeça. seria um sofrimento para a personagem esse ato. ana laura apertou os lábios, um contra o outro, e deixou sangrar. tinha vontade de chorar, mas não conseguiu - que importuna virtude, pensou; ainda tinha uma falta de pele, um descompasso da dor: uma ferida de tamanho estranho. lá fora chovia muito, mas ali alagava-se o meio fio. lembrou-se de james. lembrou-se sabrina; inevitavelmente, esqueceu-se. sentiu o peso do corpo agir sobre as pernas, mas as pernas já não pensavam. sentiu-se pateticamente confortável naquele banco duro de bar. ausentou-se: estava por conta própria. estava a se tornar a frase principal de sua poesia preferida. tudo tinha uma valor irrelevante. james parecia estar lá, porque o seu coração pulsava ali e a respiração conseguia se fazer percebida. mas ele não estava lá. nunca esteve. era cansaço, era sono. era isso. ana laura tirou um dolar amassado do bolso, e colocou no balcão sob o copo de cerveja. levantou-se. saiu do bar e não olhou o que tinha ficado atrás. chegou em casa com a calça molhada até a altura dos joelhos, em razão daquele meio fio alagado. o cabelo goetava sobre os ombros, como se tivesse acabado de sair do banho. ironicamente, sentia-se suja, imprestável.

(12 de fevereiro de 2008)

terça-feira, 8 de junho de 2010

à estribeira

A CARTA DE NÚMERO TRÊS:

não que eu não lembrasse mais do seu rosto, mas a beleza sua já não é a mesma de meses atrás. penso que essa nova beleza tenha vindo com a idade mais recente. eu ainda me lembro de você, junto a beleza antiga de quando a conheci, que me mandava sempre, e que me pedia para esperar até essa idade chegar. eu teria esperado, que fique claro. eu teria esperado até este seu aniversário. hoje, a beleza de uma cabelo já tão escuro, de um rosto já tão parte da fadiga - a pretexto do importuna rotina de trabalho que lhe cabe agora - eu me lembro novamente daquele mês cuja beleza sua, já tão confusa em mim, dispensava o sono a trocar por conversas que se jogava fora. a gente sempre espera amanhecer para ir dormir agora? eu imagino quantos costumes foram perdidos nas desfeitas que a gente fez, e às tantas caras feias, a homenagem da perda do sorriso seu em um céu tão lindo que era o seu rosto. eu tenho saudades de escrever para você, de torná-la prosa, de torná-la rima como rima sua eu era, tão sua também do samba que era nosso. e que danças, pode-se lá saber, ficaram perdidas nesse tempo? quanta bossa, quanta valsa sem par, eu imagino. e quanto balançar de ritmo nunca feito, sem letra? eu teria que ter uma história para compor - e recompor para mim, tanta falta sua. tanto me perdi, que procurei você em cada canto a pretexto da intenção de encontrá-la em um assobio, e em uma melodia qualquer retomar o trato que fizemos (de esperar o tempo descuidar do resto). que descuido, penso agora. da imaginação que te trouxe, ao tédio que te fez me visitar outra vez, a curiosidade que tão rápido te atou os braços e te levou longe, em um lugar em que o teu olho já não me permite o brilho. no lugar em que o esforço dos homens quer fazê-la feliz - onde a felicidade não se admite; e, na não existência, insisto em visitá-la sempre. insisto em tornar a casa, em retormar-lhe o desenho do rosto porque você não foi embora. então, talvez, a minha cautela já não se aplique a beleza sua que eu vejo hoje - mas aquela beleza, tão imensamente dilacerada, há de voltar a seus olhos. e eu hei de chamar-lhe sempre até o máximo da minha prematura intenção com o mesmo gostar prematuro que você deixou para mim, meses atrás.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

à miséria

A CARTA DO MEIO:

eu não conheço nada do mundo. há dias, eu tenho tido febre todos os dias - e, por isso, considero que tive um pouco de azar também. você não veio: então há muito descontentamento e tudo começa a derivar da infelicidade. os homens são barulhentos pela atenção enquanto a atenção das mulheres é silenciosa: a sua intenção nunca fez barulho mesmo, e agora eu me pego pensando sobre ela outra vez. não era direito o que tinha passado, como se uma saudade dessa se prestasse apenas ao sentimento e não à presença. hoje, são muito inquietantes as inconsequências da vida. queria poder prestar a você um serviço menos desconexo do que este. muitos sambas não tiveram refrão, eu sei. o choro do nosso samba levantou um bloco com desânimo. eu já tinha visto muita gente louca, cuja irracionalidade não era nada. a batalha nunca foi simples, mas era depois disso que ficava um vácuo. e esse se tornou um comportamento de repetição. quantas vezes, eu ainda me lembro, a gente colocou os pés para cima, em tempos em que a vida era suficiente para o distúrbio? quando a gente envelhece, a memória declina: então eu via em você uma mulher que ficaria velha em breve. a minha preocupação mudou muito neste tempo que decorreu. porque quando eu me esforcei, a sua presença me fez conhecer a estupidez - e justo eu, que achava que a paixão já era estúpida o suficiente também.

um homem, quando habita a incompreensão, desconhece-se por completo. a mulher, quando o faz, reconhece a permanência bela e tardia da poesia. é, você era um pouco de marcela também: a mulher das grandezas inigualáveis. acontece que marcela era uma mulher louca, e você era uma mulher de verdade. eu entendi que para você o gosto sempre tinha que ter uma história - acontece que o bom gosto é muito intragável também. eu fiz de você o bom gosto das roupas que eu usava, e das outras peças do guarda-roupa que você tanto trocava, a minha roupa se tornou uma inscrição, um texto seu. há sempre coisas que precisam sair da aura do desejo. e do desejo, eu tanto entendi, que a racionalidade que se curvou sobre ele acabou por transformá-lo em uma infração para você. a gente ainda vai se surpeender muito na vida - e ainda mais você, que em um deslize do meu olho perdeu a graça de uma menina para dar lugar a modernidade de uma mulher. a sua idade se aproxima, e do mapa que eu vi no seu rosto, um lugar perdido cheio das borboletas que você vê agora: eu descontruí você -, mas eu não caí nos seus olhos, por assim dizer, sem querer. eu destruí a literatura para construir a realidade. as conversas se esvaziaram: foi aí que a gente embruteceu? a qualidade requereria muito mais desejo do que isso... eu tinha que parar de escrever para mim.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

à falência

A PRIMEIRA CARTA:

depois de imaginar muito o rumo das coisas que a gente disse, hoje, a presença do tempo me faz pensar em você com um carinho maior. a gente fica bravo no abandono, claro; mas a comparação do que eu faço na minha irritação, já tão tardia, me faz entender que não mudou nada desde aquele dia. a gente não vive da infelicidade, não morre de velho mais; mas, acontece que a sensação da saudade deixa a pendência que te trouxe. eu espero que você ainda volte outras vezes para que eu veja de novo tanta coisa minha que você levou embora. porque eu te gosto com a saudade mais digna que tenho, e com o amadurecimento que eu tive depois de tanta doença que secedeu a sua partida: eu não errei com você, nem você, comigo. se você teve medo, eu fui muito feliz. porque hoje fez-se plena a constatação da minha felicidade passada com você. você não saiu, você não simplesmente deixou de estar também. você trouxe e deixou de trazer: e eu nunca soube os planos que você fez - se é que eram planos aquelas idéias que você tinha. e se é que era eu, de você, enquanto tão minha que você era também. o que era o tempo, afinal, no entendimento de quem se apaixona? eu perdi um pouco da vida na poesia do seu encanto. porque em todo canto da sua casa havia um tanto de vida que a gente tinha imaginado. a velhice do seu corpo chegaria dali a poucos meses - então, na efemeridade da sua fuga, eu me senti velha pela vida inteira. a gente nunca acha que vai ser deixado (e não por mim, mas pelas coisas que foram ditas, a fidelidade da entrega não é um objeto de prévia combinação). a gente nunca precisou combinar nada. a facilidade do acordo era a beleza do encontro. foi um verão curto e interminável. hoje eu vou dormir ouvindo as frases que você dizia e o mistério das suas palavras, já tão simples também, confundidas com o amor tão sério que se perdeu em meio a tanta desconfiança. eu teria desconfiado de mim também na ocasião. a chuva de hoje não parou: estaria o tempo permeando novas descobertas? o tempo já esperou a gente. você volta?

segunda-feira, 3 de maio de 2010

eu não segurei o meu chão

às vezes ainda a espero. nos sábados, a minha rua acabada na rua dela - e eu derivo daquele estreito em que permanece seu prédio, sua luz baixa e tudo me parece extremamente conhecido e próprio. embaixo de mim, a desobediência: tenho vontade de por as pernas a correr, subir até seu quarto, tirar-lhe a boca do rosto, torná-la minha e esperar até que suas sobrancelhas se estiquem e que nossos corpos, tão simples, se estiquem na cama. eu ainda pensava no significado do jazz e das brigas que ele nos causou. eu já tinha chegado com esta dívida? eu sabia: eu tinha sentido a euforia depois dela. eu ouvi um barulho, mas o cenário da sua rua não me disse nada. era muito barulho por nada? eram muitos tiros, muita decapitação por nada. a novidade causa hesitação. era sempre um tiro fora do eixo, no lugar no ego - e o eco inimaginavel que isso produzia. entre nós, nós eramos atores.

no seu quarto, a permanência do breu destacava seu rosto, tão meu, e tão sua também que eu era. a gente não erra duas vezes. que tempo foi esse? como, a perfeita dança nossa, tão cheia de nós, pode nos causar tanta indignação agora? eu tentava entender em que lugar a gente tinha parado, porque eu voltaria para nos recolher. porque na vida infernal, na vida sem tempo, a gente tinha se gostado - e tinha mostrado disposição e disciplina na concordância.

com você, eu não precisava dormir. eu não tinha fome. porque a sua companhia me trazia um agrado: ah, que tempo pleno das coisas tão nossas! eu me cobri da complexa musicalidade da sua fala, da intenção das suas roupas - da qual tantas vezes me despi também -, da proteção da sua nudez. a sensualidade não existia. a gente existia. a gente era feliz, e sabia.

NINGUÉM É FELIZ QUANDO ADMITE A FELICIDADE. A ADMISSÃO É UM INSTANTE DE RACIONALIDADE PURA, AO QUAL, A EMOÇÃO DA FELICIDADE NÃO SE ENCAIXA. NÃO CONSTATÁ-LA NUNCA: ESSA É A VERDADEIRA FELICIDADE. ENTÃO, SE A GENTE ERA FELIZ, EU TERIA PREFERIDO NÃO SABER.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

você não segurou o seu chão

CONTINUAÇÃO:

os muitos risos, e as armas que usamos: há sempre um espaço para se preencher sob a pele. você sabe, me conhece - eu já estive no mar. você põe suas âncoras em mim, como eu me lembro. põe suas coroas, suas tantas pernas cujas dobras já entortaram tanto em mim. tudo canta bem mais triste do que antes. haveria ainda uma razão para uma perda tão irrisória quanto esta? para o sorriso seu, de mexer tão pequeno e quase nenhum, em um céu de estrelas que era o seu rosto, eu ainda vejo a beleza deixada nas margens. nas poucas vertebras que me sobraram, ainda o ensaio do meu corpo a manter firme a minha imaginação. o futuro é o que eu imagino? o futuro é o que me toma o tempo agora, enquanto passo a gastar a espera com imagens de paisagens austeras e secas. de cenários quase alienígenas, de carentes intenções, da minha presença emprestada a você. eu não tive disciplina, nem fundamento na minha discórdia. então eu tenho de arcar com a falta? e eu não sei como você segurou o seu chão.

terça-feira, 27 de abril de 2010

eu não sei como você segurou o seu chão

você não segurou o seu chão. quantas vezes mais as fotos apagadas não mudarão nada? que tempo foi aquele, cujo tédio tinha trazido você? eu tinha me arrependido nas mínimas coisas porque as canções ficaram. e agora, esse chão pisado das roupas suas, das coisas suas, das pernas minhas - já tão suas também... que desabor! e que amor tão pouco, a tão pouco prestado. quando a sua companhia se apresentou para mim, eu olhei tudo que você tinha deixado nas palavras nunca ditas. que olhos foram aqueles seus, tão meus, tão cheios de si? o tempo passava emprestado de outro, agora. eu tentava imaginar como você poderia ter ido embora, depois da valsa, naquele hora do samba tão nosso. você tinha uma forma sua de esperar as pessoas, de tratar a gente, e eu me lembro disso com perfeição. como a vida é estranha! e quão breve somos nós... o frio daqui não me agrada.

domingo, 25 de abril de 2010

FEMININO | 2

eu tardei os passos, enquanto mulher; mas o desabor da discórdia continuou o mesmo. eu não poderia crer na maldade única, nem na generosidade específica do homem. então vem o nível literário do mundo: no campo mágico do mundo, no país do absurdo, você olha a imagem de uma mulher e é tudo muito igual. quando há mulher, não há corte seco na sedução; não há amarra. eu encurtei os passos, a troco de nada. eu era a favor da contrariedade e da violência do grito. eu cometi vários erros - e o gênero da mulher sempre se constrói do ponto de vista de um homem: o homem inventou o duelo, e a metade da chance de matar de volta. a mulher é a rainha de retórica - e essa é a violência da linguagem pública.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

FEMININO

para o gesto feminino, não pode haver pudor. vai existir uma visão simples desse comportamento dela porque o equilibrio da mulher é outro: a questão dos pés, da postura. então você descobre que fechar as pernas não diz respeito apenas ao vestido. daria perfeitamente para compor uma cena dessas - de uma poesia tamanha que poderia me engolir com facilidade. eu também tinha vontade das partes suas que sumiram. porque a fome agride, dormir demais, a falta de sono agride. e você pode cair no entendimento caso não consiga perceber o literário: eu tinha cansado de tratá-la com poesia - e isso era curioso. todas as pessoas que vivem estão inevitavelmente se vendo. e você pode pensar que o pescoço já não diz nada sobre você, que a perna ou a virilha já não são suas. a feminilidade não está vestida em você; vestida estou eu, de nós. eu tinha perdido toda a minha aversão, e tinha ganhado ânsia em relação a este risco.

sexta-feira, 19 de março de 2010

eterno presente | final

às vezes é preciso muito silêncio para que se veja a beleza. desencadear uma situação periférica não fará velhos assuntos desdobrarem. e eu já não me tornaria menos fiel a minha condição. eu tentava tratar da crise como um local externo, impróprio de mim. porque mesmo depois de quase duas semanas, eu ainda me sentia sem produzir nada. eu sentia apodrecer na intenção da escrita. das viagens, muitas delas eu já tinha desconstruido. porque a minha lembrança sobre ela tinha perdido a razão sobre o meu entendimento. eu via o seu sorriso não mover quase nada na minha memória. e na minha memória tão gasta, eu via seu rosto de mapa, em que tantas vezes desenhei o céu, e dancei a noite toda: pudera já ter perdido a conta de tantas as vezes que me perdi a ele. porque eu ainda me lembro das canções que muitas vezes nos fizeram guiar os próximos passos. eu tinha parado, e o meu olho tinha se fixado nela também: talvez essa fosse a minha desvantagem agora.

segunda-feira, 8 de março de 2010

dialética

o cansaço me ocorria
como um animal enorme a me afundar as necessidades:
porque eu não fiz nem as coisas que eu sabia fazer.

eterno presente | 6

uma cartase me contemplou agora; embora achasse isso contraditório. eu queria imaginá-la em uma situação sem a intenção degradante da fala - quando ela gritava, isso era possível. então eu voltava às nossas danças sempre. eu voltava ao ruído do jazz que era ela. eu voltava para o oscilação, para o balanço que ela tinha mostrado para mim. eu ouvia uma música contínua que ora me dava luz, ora me apresentava o breu. porque o jazz era isso: a tensão e o relaxamento; assim como a entrega passional que vai da extrema euforia à melancolia profunda. eu sei, eu a conheci. foi ela quem fez o samba do começo, quem torceu muito os braços e trouxe a alegoria toda com ela. ela não projetou riso em mim, não depositou nada porque o verdadeiro sorriso já não traz movimento nenhum. por isso, talvez, que eu entendia que o seu exagerado balançar de braços era uma intenção vazia, heroicamente vazia, para impressionar. eu voltava ao jantar calmo que tivemos, a calma que tivemos em tempos bem mais interessantes do que estes. porque eu esperava por uma nova intenção que fosse regada pela sorte. eu tinha optado pela arte, acontece que agora estava entregue ao acaso. ela era o acaso.

eterno presente | 5

talvez eu tivesse entregue uma canseira ao tempo. de toda a minha satisfação e disponibilidade, imaginava já estar farta de expressar força sobre ponteiros tão gastos. esse decorrer de horas era inativo, então eu ficava imaginando o que, possivelmente, poderia ter me trazido até aqui. muita coisa era absurda; se me perguntarem quem foi gabriela, eu diria que diferente de marcela que foi uma mulher enorme, gabriela foi uma mulher de verdade. meu conhecimento, meu pensamento nela representava um capítulo:

"cairia por terra a minha tentativa? hoje, acordar me desconcerta. faço dela uma imagem sem encaixe, quase vazia. eu não morri, talvez aí a origem do empobrecimento da minha queda. a morte era uma mulher que libertaria, como uma espécie que confiava na alma, na vontade do corpo que fazia da quietude um entendimento para a alma dela. eu queria cooperar no desenho da história, acontece que essa história foi a única história minha que tomou mais lugares do que tempo - e isso eu desconhecia, daí a minha tolice em relação ao corpo dela também. ela, na cama. eu a olhá-la muito e a pretexto de nada (como capitu, e marcela, e todas elas). ela teria que ter tido fundamento na discórdia. eu não exigi o controle, eu não perdi o corpo para outro. eu não entreguei a minha misericórdia, a minha tristeza, a minha pequena destreza. eu me coloquei na sua irracionalidade como se tivesse voltado a ter a idade dela quando essa insatisfação me ocorreu também, anos atrás. eu a entendo, entenda. e faço do meu entendimento uma continuidade da vida, e não uma ruptura. se eu tivesse enlouquecido, se tivesse perdido a cabeça, talvez a tivesse encontrado. acontece que, dessa vez, me bateu em meio a idéia uma dúvida conceitual, puramente acadêmica. eu me formava diante dela como se eu fosse uma defasagem de anos em relação a mim mesma. eu me via nela. nela, eu via o que eu tinha sido de mim um dia - a tratar do caos com frieza. porque a frieza, a crueldade da mulher é ainda maior diante de outra. eu via nela um exército que me abateria os brios, que me derrubaria o corpo no chão e o rosto por muito tempo. eu tentava montar uma postura que se mantivesse em pé, sobre os tolos pés que tinha, como ainda a contemplar seu tempo de dúvida. há coisas na vida pelas quais não se deve agradecer nunca? a dor tornaria a volta mais fácil, acontece que eu desprezava a volta agora. se o acaso havia feito tão bem às coisas, retroceder me parecia ousar em uma direção abstrata, contrária a nebulosa vontade dela. eu tentava andar, mas as minhas pernas ainda falseavam um pouco - talvez marcela estivesse a me ocorrer outra vez. ela tinha me inundado: como marcela, ela era uma onda gigante. se me perguntarem quem foi gabriela, eu direi que, assim como marcela, gabriela ela era onda gigante de óleo também."

ela tinha deixado nas linhas coisas ditas que eu também não entendia. talvez o meu exército a tivesse invadido também - porque os excessos que eu cometi não me fizeram desejá-la mais: eu já a gostava com tudo que tinha. eu tinha entendido isso como algo belíssimo também. o debate sempre gera necessidades.

eterno presente | 4

queria pensar em tempos de maior racionalidade. em tempos menos quentes, mais desgastados. antes tivesse surrado completamente o hábito, ou tivesse tornado o vício irretornável. porque agora eu não conseguia mais olhar para ela sem ver tudo que a envolvia também. gostava dela antes, quando ela ainda reclamava - alegoricamente, eu lhe punha sorriso nas fantasias. hoje, talvez, eu a prefica calada, a tornar a espera um pouco mais sábia. porque se me perguntarem quem foi gabriela, eu direi que gabriela foi uma mulher que não calou a boca, nem fechou as pernas. uma vez feita dela ficção, ela já não poderia mandar na aventura que insistiu comigo, daí a necessidade de torná-la escrita tão rápido, de não perdê-la de vista. de não parar muito em seus olhos: ela seria o meu próximo trabalho. como marcela, se descoberta, ela deixaria de existir. eu imagino que a mulher dela era um bicho ainda maior que o meu; e a sua preguiça era imensa, imersa em tanta vaidade. eu penso na beleza do rosto dela, e me cai sobre a lembrança uma martelada, uma britadeira que não pára nunca. assim como no instante de criar marcela, gabriela já tinha me tinha feito perder muito o sono na discussão minha de pequenos desprazeres com ela. não me tornará mais sábia a sua volta, nem menos feliz o seu encanto. eu me encolhia no seu encanto, ao contrário dela que se esticava na minha presença com outros. a sua beleza não precisava ser contada porque eu a via com clareza. porque eu a gostava, agora, sem todas as ironias com as quais tantas vezes gostei. de certa forma, tudo estava perfeito agora.

domingo, 7 de março de 2010

eterno presente | 3

se me perguntarem quem foi gabriela, eu direi que gabriela foi uma mulher que teve muita pressa - e que gritou muito. porque eu me lembro dos seus gritos me ensurdecerem e me vem a cabeça a imagem da imensa força que eu fazia sobre os ouvidos, as palmas abertas e os dedos entregues ao ar a tampar de mim o ruído irrisório da sua voz. mesmo depois de pensar muito nessa circunstância, o silêncio inventado que eu encontrava no seu grito fazia recriar em seu rosto uma expressão doce. como se aquela raiva pressuposse o grito e o silêncio, a quietude não estimada de nós trouxesse uma graça que eu não imaginava mais existir. as coisas boas puxariam as manias, e isso se tornaria uma mania com o tempo também. abafar um som não vai torná-lo menos agudo: eu já achava essa sitação gravíssima. agora, como se ela depositasse as coisas em mim, eu me opunha a ela diferentemente da postura que outrora assumi, de abrigá-la muito. porque no desgaste de pequenas misérias, muita coisa já tinha se perdido. já tinha tornado sua bolsa um conforto, seu colo, seu tempo um conforto sem explicação. assim como marcela, gabriela também contraía a atenção como doença. e eu fazia da sua doença uma alegoria para ela no começo, acontece que eu demorei demais para contar as horas, e para entender quantos dias haviam se passado desde que o meu bicho havia saído. porque eu senti o meu bicho, aquela preguiça enorme que eu tinha, se arrastar ainda mais. talvez na tenativa de adoçá-la, estivesse a torná-la intragavel e só: foi nisso que eu fiquei pensando.