sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

cartas marítimas | 11


aonde descansaremos nossas almas partidas, fugidas, reticentes?

fieldsville, 19 de fevereiro de 2026

maria paula,

acredito que tenha perdido a noção do tempo, desde a última vez que te escrevi. ou que escrevi, simplesmente. tenho a mania - bastante comum entre os escritores (é o que dizem) - de sucumbir a longos períodos de silêncio. será para me proteger? imagino de quais monstros tenho tentado escapar. se ele mora dentro de mim, bom, é uma casa bagunçada esta que decidiu fazer morada. aportei em pensamentos perigosos, destrutivos, numa sensação confusa de que a desconfiança apenas leva ao delírio aquele que a consome. descobri que a palavra me atrai com a mesma intensidade que me repele. alguma vez já se sentiu assim? como se fosse possível tocar o último fiapo de terra antes do abismo? talvez escrever seja isso. 

livros. sim, comprei muitos livros nos últimos seis meses sem saber quais prateleiras desejava preencher. confesso que me pareceu um ato triste, tantas vezes, já que o amor que sinto é sempre aflito. preciso de paz para ler. mas onde a encontro? na palavra dos outros? ou dos mortos? se é que faz alguma diferença. 

já me senti uma fraude. mas me sinto menos, a medida que envelheço. imagino se isso possa ser um tipo de sabedoria acumulativa da idade ou apenas sábia e nova medida que dou a vida de que uma lágrima não vale o peso de um abandono. 

quem sabe

talvez o heroísmo de nossa sobrevivência esteja justamente em não praticar atos heroicos. eu explico: há anos tenho me esforçado para salvar sabrina. às vezes, dela mesma. noutras vezes, deste amor dolorido que sinto por ela. escrevo sobre a mulher como se pudesse guardá-la numa caixinha de musica sobre a cômoda, longe do paradeiro sombrio de seus pensamentos, de suas traições armadas contra o sentimento inevitável que nutrimos por quem amamos: o desmedido zelo. porque se posso acondicioná-la em palavras, linha apos linha, numa segurança de ciência exata,  porque escolheria viver com ela? não lhe parece contraditório? acho que quem escolhe viver está apenas olhando para dentro de si. 

a alma tem um espelho cujo trincamento do tempo traz estes difusos reflexos. talvez por isso a metáfora que diz 'o amor é um bandido pegando um trem' me pareça tão atraente. o coração que ama foge para o corpo do outro. quem ama não pertence mais a si mesmo. 

ainda aguardo o coração cujo destinatário seja eu. 

um beijo e saudades urgentes,
ana.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A pedra

quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você / f. n.

O escândalo de uma pedra no meio do caminho nunca me pareceu tão concreto.

Às vezes, dou sorte de tropeçar em uma reflexão meio a pretexto de nada, apenas, como quem pega uma mão, de apertá-la muito. Olho a pedra parada no chão árido do estacionamento. Faz dias que a observo. Ora como chanfro diagonal irregular, ora como fagulha de azulejo, meio cinza ou meio avermelhada, e ela me olha, me sonda, toma conta de mim numa esguelha precisa. Eu, obliquamente, retribuo a atenção.

Ela me vê? 
Alguma poesia? ― pergunta-me a pedra.

Para a pedra, a pedra sou eu? A pedra parece um diamante bruto, não lapidado, da concretude de mim mesma. Ela pede uma biografia? Uma ciência? Uma arte?

A superfície só existe à primeira vista, devo lembrar-me. Olho a pedra e ela se torna a pedra vista por mim. Já faz parte de minha vida.

Existe a censura de um pai no olho da pedra. Isto me condena à literatura?

Acho que a pedra também é a mulher que foi embora. Aquela que quebrou os discos, que proferiu meia dúzia de verdades sobre minha conduta. Isto me salva? Gostaria de me desculpar pela ausência da minha mente, mas acredito que cada um se defende das ausências como pode.

Uma pena.

A verdade é que eu estava progredindo para me sentir estruturada, orgulhosamente orgânica de novo, mas agora, diante da pedra, tudo se transformou. O sol cálido incide sobre minhas têmporas. Uma primavera febril a qual a pedra não se assusta.

Já passa das onze.

Deveria estar trabalhando, eu penso, e estou aqui parada, mas suspensa, sem respostas capazes de amenizar aflições. A pressão típica exercida pelo tempo sobre as pessoas quando os romances são rompidos.

Acredito que tenha me tornado apenas figurado pejorativo e considerado pouco inteligente. A funcionária extravagante que faz pausas e a poeta exemplar numa mesma mulher.

Adianta?

Então a pedra é tudo?

Sim, às vezes penso que a pedra é tudo; tudo que restou; e que pode me livrar do naufrágio em vida, ou do único elemento que resta das separações: a liberdade.

Bastaria olhá-la para isso? Gostaria de alcançá-la.

A pedra foi atirada de volta em minha direção; o mundo a devolveu para mim como se soubesse que de um acontecimento trivial, cotidiano, pudesse ser tirada alguma razão vital ‒ ou poética. Tornou-se uma pedra em meu sapato. Uma pedra preciosa em meu sapato.

A PEDRA.

Tornou-se a segurança da minha existência. A garantia de afastamento da morte em razão da estupidez ímpar de um acidente. É, pode ser. Quem sabe ser pedra é estar a salvo; quem sabe a salvo, ao menos, por ser a lasca seca que ninguém deseja tomar para si. Muita coisa errada acontece em casamentos. Será que algum dia serei tão concreta como a pedra, ou tão real? Há uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho há uma pedra. Mas também, que pedra seria eu se não houvesse um meio do caminho para estar?

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Dezembro / 2014