terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hoje meu amor não ama

'bloody mary' de maria rubinke

Acordei com o coração na mão. Partido, retalhado na metade e escondido por líquido ralo e opaco, pulsava pouco e sem ordem. Em uma das partes, batia ainda um pouco de vida, um tipo de soluço ou murmúrio, baixo, com pequenas quantidades de ar na superfície, borbulhas inflamadas e vermelhas. Logo ao lado, a outra meia parcela do coração tinha cor mais escura, de ébano, ramificações concretas e granuladas, imperfeitas como a face da velhice;  tomada pela sensação de estar acabando, talvez senil e fraca, presa ao formato côncavo da cama, sobre a qual resisto e conservo esta aptidão de sentir vasta mágoa, senti as veias vazias, epidêmicas, como cordas desatadas pela base de seus nós. Minhas mãos abrigam sem destreza este músculo atrofiado, mas ainda preso ao meu corpo; sobre meu tronco, há o corte com início na entrada da garganta que desce até o limite do sexo; meus órgãos, imergidos no interior rubro do corpo, permanecem quietos, talvez paralisados pela falta de pulso do coração. Tudo dorme; vagarosamente, ergue-se sobre o perímetro do colchão a lombar, as costas, os ombros; sento-me da cama, com o que resta da vida entre meus dedos, olho meu corpo e o vejo no reflexo do espelho da cabeça até a cintura. Estou tomada por uma excitação sensorial, e triste, transmitida à medula por via nervosa ou reação motriz referente ao meu espanto de estar diante de algo tão singular, tão evidente. Hoje meu amor não ama.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

As estações | À concretude do inverno

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

TERCEIRA PARTE
a determinação está no sentido das realidades precisas

Os dias seguem quietos e longos. Horas determinadas por regulares atividades que pratico, sem pensamento ou crítica, com a normalidade de um banho morno ou gole de água em planície seca, árida, de fim a perder de vista. Neste estado privado de calor, de toque, olhos tremem por baixo das pálpebras, num sono leve, frágil, que ameaça trincar ao menor desvio, enquanto esforço-me mentalmente para vencer esta solução finada que a vida deu a nós; estes aborrecimentos, planando como abutres na crista do sonho que se perdeu, da garrafa quebrada, da palavra que já não se volta atrás. você se arrependeu? ou teve mágoas, ou pesou os erros, não sei; muito ou excepcionalmente, o verbo do amor se emprega mal, agora, porque destrata o conhecimento criado acerca da origem, do desenvolvimento de nossa nação, nossa ciência, arte, tudo; tudo criado naquele mundo, baixo, de generosas trocas - e doloridas, claro - mas atadas em nós organizados - primeira e segunda classe - capazes de guiar beijos muito bravos, raivosos, de quem passa a vida a entregar só metade; fosse nos terços ou nos quartos, o tato perdido na distancia está exposto e tem tamanho, dimensão concreta de asfalto, de buraco, de gente que passa e leva, nos carros, toda sorte de carga; pensa-te acima da multidão; eleva-te o sofrimento ao nível mais alto, rarefeito, no teto do ilustre, no heroico, porque a saudade termina logo na primeira esquina; na curva mais rápida, na prosa não lida; surge, depois, dos recolhidos cacos dos copos quebrados, a aguardente, ainda amortecendo a língua mordida, que me autocensura, belisca, impede que seu rosto se forme nos corredores diversos da memória, agredida, pela concretude dos nãos que caem como blocos de neve firmes sobre o teto, sala, como distúrbios em toda casa. Agarro-me ao lençol fino, ao cobertor grosso, e os pés interpostos sem saber se a imagem de sua face vem em paz ou em desassossego; porque se passo desta noite, deste acordo de encontro, se sobrevivo pra existência póstuma ao aborto de nós, posso determinar - quem sabe - que a realidade virá precisa e que você, mulher, também em busca, necessita desta parte abandonada de mim que entalha em você o formato do corpo, do porto que lhe represento; vem, pois, sem as armas da juramentada postura dos que não cedem e aquece-me em espírito, ao menos, nesses súbitos que arranham o céu de nossa própria imaginação. Estou largada nesta cama extensa à morte de minha própria sorte que, num descuido, pode trazer você e, depois, levá-la embora num adeus breve e indeterminado. Vista-me, mais uma vez, no pensamento para que eu saiba, enfim, se colocar nossos corpos um diante do outro é, de fato, comportamento,  desejo, um gesto de zelo que procura não só amar, mas viver. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O amor não se parece com nada

frase-se comigo.

Não é como a vida, breve; nem como a morte, temerosa. Não só como amigo; nem somente adversário. Não é primo, de rasa intimidade; nem pai de tanta ausência. Não é como mãe, nem como filho bastardo. Não é como beijo, nem como sexo que se dá a qualquer um. Não é como a sorte, que passa; nem como a dúvida, que submerge. Não é como doença, que só almeja o fim; nem como métrica, poética, ideal. Não é como xadrez, que vence o rei; nem como fábula, que sempre se salva alguém.  Não é como dor infundada, vai e volta, de nada a nada. Mas isso, também, não é como sonho, quase impossível; nem como a verdade, bem discutível. Não é só como a solidão de alguém, nem como a saudosa carta que não chega. Não é como prosa, como monstro, como sombra nos pés costurada. Não é frase indevidamente citada, prato quebrado, leite com talho. Não é gato em cima do armário. Não é faca que perdeu o fio. Não é o próprio frio, nem um maltrapilho qualquer. Não é o que se quer, nem o que se deseja; porque não é como inverno, que mata sob a neve; ou como calor, que queima toda a pele. Não é retrógrado, nem moderno. Nem de perto, seria só terno. O supor, calma, causa falha. Mas isso, a que não se parece com nada, tomba um pouco mais pro lado do eterno. Talvez seja como Deus, de facilmente negar e depois, primeiramente recorrer. Num choro, num coro, mais ou menos calado, eu - mulher - humilde, trago pra perto o tal dito. Eu o vigio; eu grito, veja!, e, ainda assim, com os mesmos drinks diante dos mesmos sonhos, o tal "isso" não se parece com nada. A toda hora não se parece com nada. Em nenhum lugar se parece com o nada. O amor não se parece com nada.