quarta-feira, 9 de outubro de 2013

me ame com fé | outubro

A,
afinal, onde construímos os nossos palácios?

gostaria muito de lhe devolver com clareza o anseio que você me proporcionou. gostaria de me postar a sua frente em resposta, em solução mágica. mas acho que construímos nossos palácios, como você me ensinou, em nós mesmos. primeiro em nós mesmos e depois, inevitavelmente, sobre as envergaduras de todo tipo - quer de dor, quer de saudade.

ah, como tantas vezes pode ser áspero nosso desejo de fé, de concórdia... de paz! e pensamos que antes nossa terra fosse seca e não desse nada, ao menos não a tomariam de nós, não é mesmo? mas você, em suas verdades e mais atenuado espírito de auto-critica, ministrou uma vida focada na congruência e no encontro. te encontrei, me encontrou, te tratei, me trataste como força, como laço. e nos nós de nossas entranhas até mesmo os intestinos delegaram ora vômitos, ora a mais plena sensação de saciedade.

só o tempo trará a mim o instante real do repouso e creio que a você também. muito embora busquemos acelerar o momento do sofrimento e puxar o elástico das sensações de prazer. o tempo cai bem ao inteligente, e digo isso a você com uma certeza que passeia por pouquissimos campos de minhas convicções.

sei que seguiremos mais limpas e asseadas, a cada dia que passa, como um cavalo garboso em sítio terno onde verdejam os campos. o galanteio é difícil a quem vive sob a eterna penalidade de si mesmo, ainda que tendamos para o desajuste cômico das manobras ousadas cujas nossas asas ainda respiram, tão frescas, os viços da juventude.

somos tímidos reagentes. acontece que no cerne desta transformação específica, sei que nos humanizaremos e nos identificaremos concretamente frente aos ataques da matilha. e que assim seremos também.

fique.
com fé,

N.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

cartas marítimas | 9

fildsville, 31 de fevereiro de 2023.


maria paula,

acho que desenvolvi uma necessidade psicológica de acumular. faz dias que não tenho coragem de me aproximar das beiradas da cama, pois me invade uma mansidão cujo tamanho eu jamais havia experimentado. metade consequência do porre, metade casulo de minha própria mente. nada me atinge ou me desonra. percebo os outros como projéteis desgovernados vindo em minha direção, minha amiga, e tal qual uns vultos desalmados, atravessam por mim sem ferir nada. meu aspecto é frio, vítreo. ao mesmo tempo, sinto toda e qualquer afirmação sobre mim infiltrar-se em minha cabeça como uma britadeira no concreto da rua. eu me parto. sou um pequeno pedaço solto, uma quantidade diminuta qualquer.

são verdadeiros os boatos de que este clima insalubre se tornou referência para meu pensamento. tudo adoece nesta óptica e por este prisma. exerço a minha visão sobre as eventualidades recentes como se o silêncio fosse um artigo de privilégio... reflito, refrato e separo em tantas ordens e por tantas vezes que já não ousaria contabilizar. acho que tudo o que é preciso é respeitar o tempo. o melhor silêncio é o silêncio autoral.

eu renuncio à dignidade soberana do domínio de mim mesma. perdi rédeas da moderação, como uma corda solta, puxada pelo peso prédio abaixo. não sei como reagir diante desta nova postura tão vaga, inconsistente, anônima. agora, sabrina é uma memória de distância; e embora sua forma em meu imaginário permaneça intacta, só posso me apoderar dela bem pouco. tentei fazer desta ruptura uma concessão para que ambas realizássemos nova parte da vida daqui em diante. mas acredite, sem rodeios, que esta metade a que me resta viver não será de ocupação ligeira ou agradável. eu sinto não ter sido a ideal companhia nestas semanas que passou aqui em sua última estadia. mas confesso que esta inércia em mim mesma é como uma mão gigante espremendo minhas vias respiratórias. meu tempo atual é de aflição. nada mais.

meu trabalho no escritório não se estenderá por mais de três semanas. logo, a ideia de visitá-la me parece ainda mais cativante e próxima. foram realmente inspiradores os dias que passei aí durante aquele outono, jamais me esquecerei disso.

espero ouvir noticias suas em breve.
com saudades,
ana.

ps. chico e lola, os pássaros que compramos na viagem ao brasil, permanecem com a saúde em observação. não há certeza quanto ao sentimento que sabrina e eu partilhamos neste momento, nem em que nível. mas é certo que vida segue costurando laços no sentido sensorial e interpretativo absolutamente para além de nós. estamos os quatro suspensos no ar e, sim, em um o futuro que só possui a habilidade de conseguir quando se admite presente. tão raro! quero terminar em dança, não em marcha.