quinta-feira, 5 de abril de 2012

a janela poética

A JANELA POÉTICA
o filme.




A JANELA POÉTICA
(maio.2009)
conto do que seria parte do livro 'todos os textos do mundo' / que deu origem ao filme.


Levemente projetado para frente – um rosto projetado em direção ao futuro e àquilo que é novo. Pediu para que o motorista do táxi se apressasse um pouco, pois queria chegar ao prédio antes que ela saísse. Sabia que ela costumava sair cedo para ir ao Right on Time’s, mas também deve-se levar em consideração que ela, Sabrina, tem o péssimo costume de se atrasar sempre, e para tudo. Confunde horários e datas. Troca compromissos; (sequer sabe o dia em que nasceu. Nasceu, diz sua mãe, próximo à meia noite do dia doze, porém o trabalho para trazê-la ao mundo foi difícil e demorado, então não sabe se chegou aqui só no dia treze. Seu aniversário é um mistério, assim como todo o resto que lhe diz respeito).

Quando estava próximo ao cruzamento da rua de Sabrina, o trânsito estava parado – talvez algum acidente, ou talvez o engarrafamento usual daquela hora da manhã nas terças-feiras. Pediu, então, ao motorista, que ele estacionasse, pois desceria ali mesmo. O homem lhe disse que eram onze dólares. Ana Laura lhe entregou logo quinze: ficasse com o troco. Desceu do carro e bateu a porta com força, em seguida, olhou para ele e desculpou-se fingindo estar atrasada: batera forte demais. Sentia uma pressa real. Queria que ela estivesse em casa ainda, queria que ela estivesse atrasada naquele dia. Contestou-se: ao mesmo tempo, não queria. Sentiu vontade de escrever. Sentiu uma inspiração repentina – apesar de a inspiração ser apenas dez por cento dos processos escritos mais geniais. Escreveria feito doida, porém sabia que não teria sequer uma única palavra específica na ponta da língua que pudesse expressar o quando realmente a gostava. Então calou. Sentou-se nos primeiros dois degraus da escada do prédio, depois de tocar o interfone e ela não atender. Apoiou a sacola ao lado da perna, fingindo, agora, não estar sozinha. Precisava de uma companhia ali para esperar por ela. Esperou. Estava, inevitavelmente, a esperar.

Pensou em colocar a sacola em meio aos arbustos que havia em volta da escada, escondê-la; e então telefonar-lhe mais tarde: deixei uma coisa para você em meio ao mato na frente do seu prédio – mas a idéia, assim como a frase que a compunha, lhe pareceu estúpida. Precisava entregar-lhe pessoalmente: sabe que a reação da pessoa diz muito em relação a quem presenteia e também ao próprio presente. Sabe que ela vai adorar ganhar ser chocolate favorito, mas o que isso lhe significa? Então pensa. O que traduz o chocolate e como se traduz sua atitude em trazê-lo? O que quer dizer a sacola no qual o doce é transportado? O que diz, então, a própria sacola pequena e verde de perfume que pegou no armário para trazer ambos, chocolate e gravador? – ah, sim: o gravador. E aquele poema gravado com voz de sono, lhe significa algo? O poema dialoga com ela ou apenas rompe o silêncio entre ela e o espelho? Ou entre ela e a parede? As palavras ocupam o quarto e a ocupam também? Ocupam-na por dentro? Ou, novamente, apenas a rodeiam em vão? O que significa essa cena patética de estar sentada em sua porta com um doce e um poema nas mãos e com os pés calçados com aquele tênis velho, que enverga seus dedos? Odeia parecer tola. Poderia tirar o tênis e relaxar, claro, mas isso não se trata somente de um tênis ridículo e apertado. Seria Sabrina um motivo suficientemente grande para que ela se sente e espere? James jamais havia feito nada assim por ela, tampouco havia por Sabrina – sua calça social não permitiria tal comportamento. Mas que parasse de se comparar a ele o tempo todo; percebe que pensa como louca, porém, louca que é, já não consegue mais parar. Então, por favor, não se preocupe se ela acabar por ai, despedaçada. Seus pedaços ainda serão verdadeiros e originais: não troca peças há anos. Seus fragmentos de corpo ainda serão sinceros e defenderão Sabrina como mulher, e não apenas como pessoa. Então seu medo; seu medo de entregar o gravador é justamente resumi-la a alguém que gosta de poemas e só. Ou alguém que come chocolate ao invés de frutas e outras coisas saudáveis. Tem medo de restringi-la. De colocá-la no lugar comum, no lugar em que estão todas as  pessoas que não se alimentam de forma adequada, ou que não praticam esportes, elas simplesmente comem porcarias e escutam poemas deixados em gravadores o dia todo. 

Então parou mais uma vez: era demais para sua cabeça pequena e de cabelos escuros pensar em um espera tão complexa. Quer existir e só. Quer poder sentar-se em um degrau qualquer e esperar. Não pode, contudo. Não consegue, pois pensa demais. Arquiteta planos com um freqüência demasiadamente grande. Tortura-se. Não se deixa em paz, tampouco sossega. Está a tentar encaixar-se em lugares pequenos e estreitos, porém pertence a tantos lugares enormes ao mesmo tempo, que apenas colocar-se aqui ou ali é algo não só mentiroso como também dissimulado, assim: verdadeiramente omisso.

Fuçou a sacola mais uma vez, de modo a se certificar que tudo ainda estava ali – tem mesmo essa desconfiança perpétua em relação a tudo. Mal sabia que seu telefone tocava naquele instante, e ela, boba, estava a procurar trevos de quatro folhas no jardim. E deve-se agora considerar que isso era apenas um conceito. Um protótipo de vida perfeita e de uma beleza que não existe. De um amor que é breve e que machucava. Que está sempre se pondo. Indo embora. Deixando-a para trás, e que a faz limitar-se a sentar em degraus na rua, a segurar sacolas em um canto estranho da cidade e esperar.

Sabrina morava em uma rua arborizada. As folhas secas caiam das árvores e tomavam os arredores do meio fio. Tudo tinha um aspecto rústico e um tom bege, que se intensificava nos finais de tarde e nas manhãs, quando o sol batia por trás dos prédios e formava sombras disformes no asfalto, já gasto e com marcas de pneus, aquele asfalto ressecado, como pele de velho. Então, por que haveria de se irritar? As folhas secas voavam com o passar dos carros e dos dias e se instalavam nos primeiros degraus dos prédios. O passar das semanas se repetia. As regras nunca mudam mesmo, então até mesmo ela se repete. E fala tanto que chega a se contradizer. A imagem das folhas se repete ao seu lado – elas voam sempre para os mesmos lados e se acumulam das mesmas formas. Sobrepõem-se sem consciência: Ana Laura perde a consciência também; voa para longe dali. Então se lembrou do rosto dela mais uma vez – talvez aquele rosto e aquele seu formato único jamais estivessem em outro ser, ou em outra criança. Sabrina queria filhos, mas não queria dar a luz a eles, propriamente – queria ser mãe, porém mãe lhe remete a uma figura infinitamente mais complexa e importante do que ser aquele que carrega ou carregou uma criança dentro do corpo. E Ana Laura, ali sentada na calçada no final do outono – não que isso fosse relevante para a cena, porque não era mesmo – definitivamente queria filhos.

Sabrina seria mesmo uma ótima mãe: ela tinha uma paciência para explicar detalhes e uma decência em relação aos assuntos da família. Tivera uma boa educação, e tentava mesmo fazer jus a ela o tempo todo. Sentada de pernas cruzadas, pintava as unhas, penteava o cabelo – mas era sempre a mesma merda: era alguém que não era de fato. Ela mesma falava: era a mulher que não era – e não que falasse mais deles, porque não falava nunca, apenas castrava-se perto dos pais. Cobria tatuagens, subia as calças, dobrava a manga da camisa por cima do suéter. Portava-se bem; ou pelo menos tentava. uma hora e outra soltava algum palavrão, e então se desculpava, dizendo que tinha chutava a quina do armário ou havia tropeçado no tapete. Essa pose não combinava com ela. Sabrina era espontânea demais para se portar assim, pois, agora que já possuem certa intimidade, que já se conhecem suficientemente bem, entende que todas as definições previamente feitas a seu respeito foram precipitadas e, a esta hora, acumulam-se sem sentido, como se não entendessem a razão pela qual estão organizadas em fila. As definições de Ana Laura em relação a Sabrina estão soltas no ar, planando sobre sua cabeça pequena, fingindo uma ordem que não existe. Estão confusas, não sabem qual direção seguir – não eram, pois tinham medo de ser. Não erram, pois têm medo de errar: erram, pois, o tempo inteiro. Fazem bolero, dançam tango, mas não chegam a conclusão nenhuma, apenas voltam a entupir os espaços vazios em que deveria haver qualquer pensamento revolucionário. As decisões precipitadas imobilizam a ideologia e as mantêm presas; assim, como fazê-las mudar de lugar? O que as locomove? Ou as comove? O que as tira dali? Talvez um filho tire.

Mas então pensa que seu filho jamais verá o pai fazer a barba – talvez apenas veja Sabrina depilando a perna. E não o verá consertando o carro ou abrindo um pote de azeitonas de forma bruta. Ele apenas vai sentar-se à mesa e comer azeitonas pretas que vêm em embalagens deplástico. Decepcionaria-se? Jamais. Somente uma variação, tem condições de sobreviver sem ver alguém coberto de graxa na garagem, pode andar de táxi para sempre – apesar de isso lhe embrulhar o estômago, se precisasse vender o carro azul, venderia; porém espera não ter que fazê-lo: quer deixar alguma coisa, além de educação, para o filho que não tem.

Estranho, pensa. Achava que as coisas mais estranhas da vida não fossem assim tão fáceis de descrever. Mas que se SEJA, já não se importa tanto assim com isso. Vai esperá-la voltar. Pelo menos por enquanto vai. Vai entregar-lhe o chocolate – mas não qualquer um, o seu favorito. Vai plantar uma muda de árvore. Vai terminar de ler um livro. Vai ter este filho – não necessariamente nesta ordem. Vai esperá-la voltar, sem pressa. E o resto? Ah, o resto depois resolve. O resto é o resto e só. O resto, assim como já se explica, é o resto. É a sobra. É a continuação que não faz sentido. É aquilo que ninguém quis, pois é disfuncional. Retardado. Bobo. E então uma consideração engraçada: quando se quer tanto, se quer tanto tudo, esse desejo impossibilita sua própria plena realização. Ter tudo significa ter o resto também, mas o resto não se deseja jamais. Então como filtrar o desejo? O resto também é o novo todo que desperta interesse naquele que não tem tudo. O resto é justamente aquilo que a faz esperar no degrau. O resto é pouco, pequeno, restrito. O resto é o menor grupo dos grupos pequenos. O resto existe incondicionalmente, e o todo? Ah, o todo é uma ilusão. O resto de tempo é a resistência. A insistência. A nova tentativa. Abriu o guarda-chuva e encolheu-se. Recolheu a sacola para perto de si, para ainda mais junto de sua perna. A chuva não estava prevista – esses noticiários estavam mesmo se tornando uma merda. 

Estava a esperar. Então abriu um pequeno caderninho que carregava no bolso da jaqueta, cheio de dobras nas pontas das folhas e a capa, com um desenho azul qualquer, já praticamente toda solta do espiral fino e torto, e esperou. Aguardou mais um instante: era um espiral bem bobo mesmo. Fez-se superior. Fuçou no outro bolso e encontrou uma caneta – testou-a em uma folha no final da caderneta, fazendo rabiscos. Sabe que em meio a outras moças, escrever na chuva a faz diferente – então qualquer moça que lhe olha, a vê como se ela fosse uma estranha. Ou uma doida, pois escreve palavras que são provenientes do temporal. Pensou em ir ao bar que havia ali em frente, sentar-se em um banco decente, pedir um cachorro-quente e um suco de morango – sem gelo e sem açúcar, seu favorito – e escrever corretamente. Não abreviaria palavras ou esqueceria de vírgulas. Sabe que deveria fazer isso, mas não conseguia: era fraca demais. Era fraca um tanto assim, bem grande. E que futuro, que nada: ascendeu um cigarro. Tragou fundo enquanto equilibrava o guarda-chuva entre o ombro e o pescoço. Alguns pingos caíram e mancharam a tinta da caneta no papel – distorceu-se o que estava escrito. Apressou-se para corrigir o estrago, mas já era tarde demais para isso. Estava atrasada, como sempre. Procurou, já desconsolada, qualquer outra palavra que a pudesse substituir, que pudess substituir o borrão, mas, de algum modo, seu repertório lhe pareceu limitado. Inferior. Minúsculo. Precisava parar de olhá-la e de imaginar seu rosto. E precisava parar de imaginar os óculos que ela usava, fingindo uma elegância social que não tinha. Ou uma inteligência matemática que não tinha, e que, talvez, jamais chegasse a ter, pois possuía somente uma capacidade de se desenvolver artisticamente; apesar de que suas tintas terem estado secando próximo à janela aberta e estarem meio desbotadas também. O colorido perdeu a cor. Seus quadros, ou os poucos quadros que lhe restaram – vendera os cinco últimos por uma mixaria quando precisou pagar o aluguel atrasado – guardava em um canto atrás da porta do quarto. Um canto escuro e esquecido. Seu apartamento tem certo estilo francês, e um tom de albergue europeu. E não que tenha luxo, por que não tem mesmo, mas também não é uma maloca. Não é uma maloca qualquer: é a sua maloca: e isso lhe gera orgulho. É o seu lugar. É o seu pequeno e aconchegante espaço de mundo. Seu pedaço pouco ensolarado de mundo. 

Então lembrava, agora, que muitas vezes depois do sexo ela se postava perto da janela – a janela das tintas secas – e colocava os óculos só de calcinha e sutiã, e olhava pelo vidro para a cidade. Desviava da cortina fina. A cama ficava perto da janela também, como se fosse um parapeito interno, ou uma continuação da paisagem e das folhas velhas da rua. O lençol escuro, quase preto, fazia contraste com os tons de amarelo da calçada e, ao mesmo tempo, os completava.  Aquele pequeno luxo era todo o luxo que tinham e isso, de certa forma, bastava. Agora, contudo, o guarda chuva sobre sua cabeça não lhe permitia olhar para cima e ver a janela poética de Sabrina – admite: as mulheres possuem mesmo uma beleza (uma raridade) digna de poesia; e não que os homens não a possuam, mas as mulheres a possuem incondicionalmente – pois que continuou: abriu a caderneta na primeira folha em branco que encontrou depois de pouco folhear e muito se importar. Finalmente encontrou aquela página nova e intacta que esperava por ela. Recorreu ao seu repertório, esperando apenas que ele não fosse assim tão ingrato desta vez. Caso não escrevesse, haveria de viver de quê? Do dinheiro que ganha por aquele emprego ridículo no escritório? Definitivamente não. Não espera para si uma proposta maravilhosa de emprego, porque aquele curso que fez era porco demais. Pois que deve, mais uma vez, explicar-se: é inteiramente constituída de palavras – quando escreve, não somente escreve, descreve-se e se coloca estampada no papel; faz companhia àquilo que explicita assim como a sacola lhe faz companhia. E o chocolate faz ao gravador e vice-versa.

Não consegue apenas sentar e esperar. Inquieta-se por qualquer motivo. Não sossega, pois o sossego subentende algo que se fez compensatório ao esforço – não era esforço esperar Sabrina chegar. O excesso de risco gera, nela, insegurança. Pensou pedir ao guarda da rua, que olhasse por ela; desistiu. Pensou em lhe escrever uma carta, já que sua fala tem estado meio viciada; desistiu. Está a trocar as mesmas frases há dias, como peça de roupa que não diz nada de novo. 

(Ela tinha sido revolucionária, mas todo mundo já tinha feito isso antes).

Sequer se move ou se manifesta. Existe algo para ela além da distância que propôs de maneira tola? Tem algo grande para ela, tem uma carta que não sabe como começar a escrever. Guardou o caderninho de volta no bolso e cruzou os braços sobre os joelhos curvados em cima do degrau. Abaixou a cabeça. Notou que ninguém sorria em sua direção – os sorrisos são barulhentos, alarmantes. Os dentes rangem quando se sorri. O tempo parece não passar no silêncio, apenas as buzinas da rua interrompem aqui e ali. Ela está parada feito degrau de cimento. Está patética como sacola com chocolates e poemas. Do tempo que decorreu, seu instinto não chegou a promover nada. Deixou que ela ficasse ali sentada como um chocolate de um dólar – seu preferido. Nenhuma pluralidade ou acontecimento fora do comum. Nenhum exagero, apenas uma cabeça curvada sobre a coxa, fingindo sono e fingindo a beleza poética que lhe é naturalmente de direito. Não queria um documentário da vida, aquela coisa chata; mas uma descrição barata e eficiente. Talvez fosse hora de parar de negar seu corpo perante outras pessoas. Alguns já nasceram grandes, Ana Laura apenas nasceu. E não entendeu o porquê de não poder se sentar em um degrau na rua e esperar. Pensa demais. Reflete demais sobre si. Sobra em cima e dos lados. Extrapola-se. Tem overdoses  dela mesma. Então encomenda um novo corpo pelo correio, contorcido em uma caixa de papel pardo – pois que seu corpo magro já não serve para nada. E que inferno: não consegue apenas abaixar a cabeça e dormir no próprio colo. Precisa imaginá-la de olhos fechados. Precisa fechar-lhe os olhos, tirar-lhe a roupa. Precisa de tudo em um segundo, precisa dar mais tempo ao que durou um segundo, ao drama ou à cama mal vestida.

E que saúde, que nada: acendeu outro cigarro.
Desta vez o isqueiro não falou com ela. Ou falhou.
O fim não tem fim.


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