sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

cartas marítimas | 11


aonde descansaremos nossas almas partidas, fugidas, reticentes?

fieldsville, 19 de fevereiro de 2026

maria paula,

acredito que tenha perdido a noção do tempo, desde a última vez que te escrevi. ou que escrevi, simplesmente. tenho a mania - bastante comum entre os escritores (é o que dizem) - de sucumbir a longos períodos de silêncio. será para me proteger? imagino de quais monstros tenho tentado escapar. se ele mora dentro de mim, bom, é uma casa bagunçada esta que decidiu fazer morada. aportei em pensamentos perigosos, destrutivos, numa sensação confusa de que a desconfiança apenas leva ao delírio aquele que a consome. descobri que a palavra me atrai com a mesma intensidade que me repele. alguma vez já se sentiu assim? como se fosse possível tocar o último fiapo de terra antes do abismo? talvez escrever seja isso. 

livros. sim, comprei muitos livros nos últimos seis meses sem saber quais prateleiras desejava preencher. confesso que me pareceu um ato triste, tantas vezes, já que o amor que sinto é sempre aflito. preciso de paz para ler. mas onde a encontro? na palavra dos outros? ou dos mortos? se é que faz alguma diferença. 

já me senti uma fraude. mas me sinto menos, a medida que envelheço. imagino se isso possa ser um tipo de sabedoria acumulativa da idade ou apenas sábia e nova medida que dou a vida de que uma lágrima não vale o peso de um abandono. 

quem sabe

talvez o heroísmo de nossa sobrevivência esteja justamente em não praticar atos heroicos. eu explico: há anos tenho me esforçado para salvar sabrina. às vezes, dela mesma. noutras vezes, deste amor dolorido que sinto por ela. escrevo sobre a mulher como se pudesse guardá-la numa caixinha de musica sobre a cômoda, longe do paradeiro sombrio de seus pensamentos, de suas traições armadas contra o sentimento inevitável que nutrimos por quem amamos: o desmedido zelo. porque se posso acondicioná-la em palavras, linha apos linha, numa segurança de ciência exata,  porque escolheria viver com ela? não lhe parece contraditório? acho que quem escolhe viver está apenas olhando para dentro de si. 

a alma tem um espelho cujo trincamento do tempo traz estes difusos reflexos. talvez por isso a metáfora que diz 'o amor é um bandido pegando um trem' me pareça tão atraente. o coração que ama foge para o corpo do outro. quem ama não pertence mais a si mesmo. 

ainda aguardo o coração cujo destinatário seja eu. 

um beijo e saudades urgentes,
ana.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A pedra

quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você / f. n.

O escândalo de uma pedra no meio do caminho nunca me pareceu tão concreto.

Às vezes, dou sorte de tropeçar em uma reflexão meio a pretexto de nada, apenas, como quem pega uma mão, de apertá-la muito. Olho a pedra parada no chão árido do estacionamento. Faz dias que a observo. Ora como chanfro diagonal irregular, ora como fagulha de azulejo, meio cinza ou meio avermelhada, e ela me olha, me sonda, toma conta de mim numa esguelha precisa. Eu, obliquamente, retribuo a atenção.

Ela me vê? 
Alguma poesia? ― pergunta-me a pedra.

Para a pedra, a pedra sou eu? A pedra parece um diamante bruto, não lapidado, da concretude de mim mesma. Ela pede uma biografia? Uma ciência? Uma arte?

A superfície só existe à primeira vista, devo lembrar-me. Olho a pedra e ela se torna a pedra vista por mim. Já faz parte de minha vida.

Existe a censura de um pai no olho da pedra. Isto me condena à literatura?

Acho que a pedra também é a mulher que foi embora. Aquela que quebrou os discos, que proferiu meia dúzia de verdades sobre minha conduta. Isto me salva? Gostaria de me desculpar pela ausência da minha mente, mas acredito que cada um se defende das ausências como pode.

Uma pena.

A verdade é que eu estava progredindo para me sentir estruturada, orgulhosamente orgânica de novo, mas agora, diante da pedra, tudo se transformou. O sol cálido incide sobre minhas têmporas. Uma primavera febril a qual a pedra não se assusta.

Já passa das onze.

Deveria estar trabalhando, eu penso, e estou aqui parada, mas suspensa, sem respostas capazes de amenizar aflições. A pressão típica exercida pelo tempo sobre as pessoas quando os romances são rompidos.

Acredito que tenha me tornado apenas figurado pejorativo e considerado pouco inteligente. A funcionária extravagante que faz pausas e a poeta exemplar numa mesma mulher.

Adianta?

Então a pedra é tudo?

Sim, às vezes penso que a pedra é tudo; tudo que restou; e que pode me livrar do naufrágio em vida, ou do único elemento que resta das separações: a liberdade.

Bastaria olhá-la para isso? Gostaria de alcançá-la.

A pedra foi atirada de volta em minha direção; o mundo a devolveu para mim como se soubesse que de um acontecimento trivial, cotidiano, pudesse ser tirada alguma razão vital ‒ ou poética. Tornou-se uma pedra em meu sapato. Uma pedra preciosa em meu sapato.

A PEDRA.

Tornou-se a segurança da minha existência. A garantia de afastamento da morte em razão da estupidez ímpar de um acidente. É, pode ser. Quem sabe ser pedra é estar a salvo; quem sabe a salvo, ao menos, por ser a lasca seca que ninguém deseja tomar para si. Muita coisa errada acontece em casamentos. Será que algum dia serei tão concreta como a pedra, ou tão real? Há uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho há uma pedra. Mas também, que pedra seria eu se não houvesse um meio do caminho para estar?

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Dezembro / 2014

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hoje meu amor não ama

'bloody mary' de maria rubinke

Acordei com o coração na mão. Partido, retalhado na metade e escondido por líquido ralo e opaco, pulsava pouco e sem ordem. Em uma das partes, batia ainda um pouco de vida, um tipo de soluço ou murmúrio, baixo, com pequenas quantidades de ar na superfície, borbulhas inflamadas e vermelhas. Logo ao lado, a outra meia parcela do coração tinha cor mais escura, de ébano, ramificações concretas e granuladas, imperfeitas como a face da velhice;  tomada pela sensação de estar acabando, talvez senil e fraca, presa ao formato côncavo da cama, sobre a qual resisto e conservo esta aptidão de sentir vasta mágoa, senti as veias vazias, epidêmicas, como cordas desatadas pela base de seus nós. Minhas mãos abrigam sem destreza este músculo atrofiado, mas ainda preso ao meu corpo; sobre meu tronco, há o corte com início na entrada da garganta que desce até o limite do sexo; meus órgãos, imergidos no interior rubro do corpo, permanecem quietos, talvez paralisados pela falta de pulso do coração. Tudo dorme; vagarosamente, ergue-se sobre o perímetro do colchão a lombar, as costas, os ombros; sento-me da cama, com o que resta da vida entre meus dedos, olho meu corpo e o vejo no reflexo do espelho da cabeça até a cintura. Estou tomada por uma excitação sensorial, e triste, transmitida à medula por via nervosa ou reação motriz referente ao meu espanto de estar diante de algo tão singular, tão evidente. Hoje meu amor não ama.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

As estações | À concretude do inverno

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

TERCEIRA PARTE
a determinação está no sentido das realidades precisas

Os dias seguem quietos e longos. Horas determinadas por regulares atividades que pratico, sem pensamento ou crítica, com a normalidade de um banho morno ou gole de água em planície seca, árida, de fim a perder de vista. Neste estado privado de calor, de toque, olhos tremem por baixo das pálpebras, num sono leve, frágil, que ameaça trincar ao menor desvio, enquanto esforço-me mentalmente para vencer esta solução finada que a vida deu a nós; estes aborrecimentos, planando como abutres na crista do sonho que se perdeu, da garrafa quebrada, da palavra que já não se volta atrás. você se arrependeu? ou teve mágoas, ou pesou os erros, não sei; muito ou excepcionalmente, o verbo do amor se emprega mal, agora, porque destrata o conhecimento criado acerca da origem, do desenvolvimento de nossa nação, nossa ciência, arte, tudo; tudo criado naquele mundo, baixo, de generosas trocas - e doloridas, claro - mas atadas em nós organizados - primeira e segunda classe - capazes de guiar beijos muito bravos, raivosos, de quem passa a vida a entregar só metade; fosse nos terços ou nos quartos, o tato perdido na distancia está exposto e tem tamanho, dimensão concreta de asfalto, de buraco, de gente que passa e leva, nos carros, toda sorte de carga; pensa-te acima da multidão; eleva-te o sofrimento ao nível mais alto, rarefeito, no teto do ilustre, no heroico, porque a saudade termina logo na primeira esquina; na curva mais rápida, na prosa não lida; surge, depois, dos recolhidos cacos dos copos quebrados, a aguardente, ainda amortecendo a língua mordida, que me autocensura, belisca, impede que seu rosto se forme nos corredores diversos da memória, agredida, pela concretude dos nãos que caem como blocos de neve firmes sobre o teto, sala, como distúrbios em toda casa. Agarro-me ao lençol fino, ao cobertor grosso, e os pés interpostos sem saber se a imagem de sua face vem em paz ou em desassossego; porque se passo desta noite, deste acordo de encontro, se sobrevivo pra existência póstuma ao aborto de nós, posso determinar - quem sabe - que a realidade virá precisa e que você, mulher, também em busca, necessita desta parte abandonada de mim que entalha em você o formato do corpo, do porto que lhe represento; vem, pois, sem as armas da juramentada postura dos que não cedem e aquece-me em espírito, ao menos, nesses súbitos que arranham o céu de nossa própria imaginação. Estou largada nesta cama extensa à morte de minha própria sorte que, num descuido, pode trazer você e, depois, levá-la embora num adeus breve e indeterminado. Vista-me, mais uma vez, no pensamento para que eu saiba, enfim, se colocar nossos corpos um diante do outro é, de fato, comportamento,  desejo, um gesto de zelo que procura não só amar, mas viver. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O amor não se parece com nada

frase-se comigo.

Não é como a vida, breve; nem como a morte, temerosa. Não só como amigo; nem somente adversário. Não é primo, de rasa intimidade; nem pai de tanta ausência. Não é como mãe, nem como filho bastardo. Não é como beijo, nem como sexo que se dá a qualquer um. Não é como a sorte, que passa; nem como a dúvida, que submerge. Não é como doença, que só almeja o fim; nem como métrica, poética, ideal. Não é como xadrez, que vence o rei; nem como fábula, que sempre se salva alguém.  Não é como dor infundada, vai e volta, de nada a nada. Mas isso, também, não é como sonho, quase impossível; nem como a verdade, bem discutível. Não é só como a solidão de alguém, nem como a saudosa carta que não chega. Não é como prosa, como monstro, como sombra nos pés costurada. Não é frase indevidamente citada, prato quebrado, leite com talho. Não é gato em cima do armário. Não é faca que perdeu o fio. Não é o próprio frio, nem um maltrapilho qualquer. Não é o que se quer, nem o que se deseja; porque não é como inverno, que mata sob a neve; ou como calor, que queima toda a pele. Não é retrógrado, nem moderno. Nem de perto, seria só terno. O supor, calma, causa falha. Mas isso, a que não se parece com nada, tomba um pouco mais pro lado do eterno. Talvez seja como Deus, de facilmente negar e depois, primeiramente recorrer. Num choro, num coro, mais ou menos calado, eu - mulher - humilde, trago pra perto o tal dito. Eu o vigio; eu grito, veja!, e, ainda assim, com os mesmos drinks diante dos mesmos sonhos, o tal "isso" não se parece com nada. A toda hora não se parece com nada. Em nenhum lugar se parece com o nada. O amor não se parece com nada. 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Deus, nome impróprio

A ideia de Deus é uma ideia atroz.

Este é lugar em que se testemunhará um ato trágico: um pouco da morte de Deus. Não sou assassino a discorrer devaneio, tampouco criminoso em potencial. Não. O veludo suspenso a minha frente se abre e me revela parado, inofensivo. Aqui jaz apenas um homem ordinário diante de uma platéia comum. Uma gota de suor escorre, estou vivo. Uma senhora ergue o pescoço, é curiosa. O bom truque precisa de muitas provações. O velho, o paralítico, a criança, a puta, os guardas: é preciso fazer com que cada uma destas pessoas duvide de mim. Eu avanço três passos ensaiados em direção a mesa no centro do palco. Ela é simples. Sobre ela, a gaiola abriga um pequeno pássaro. Sobre os rostos, há silêncio inédito. Sinto-me ilustrado, cultuado. Este é um ramo em que as pessoas apreciam a ilusão – embora não seja o único. Eu retiro um pedaço de tecido cintilante do bolso, um objeto corriqueiro como tudo a minha volta e nesta vida. O único som que reverbera é o batimento das minúsculas asas, tão aceleradas quanto o piscar da luz de um estrobo. Quanto mais o pássaro se debate na gaiola, mais minhas mãos se aproximam da imundice que cairá sobre elas. Os mágicos apenas fingem fazer aquilo que os magos praticam por excelência. Os mágicos são homens como eu, invejosos, mortais, que sujam as mãos na prática de toda sorte de prazer. Então, a ilusão da magia que pratico é a de ludibriar a platéia. Do meu o poder de convencê-los de que estão olhando atentamente, prontamente, de que sua ignorância humana não os condenará – de que o deleite sujo pode ser irreal por um dia, por um ato, por um momento, enquanto os aproximo da obediência cega – tal qual a divindade faz ao lhes privar o juízo –, e os afasto com seguidas atitudes corrompidas contrárias as da verdadeira fé, da fé genuína, que abre os olhos diante do milagre. Estou disposto a contradizê-los incessantemente porque a dúvida é o motivo pelo qual retornam. A ausência de magia é evidente. Só os magos são os verdadeiros guardiões do desenvolvimento integral das faculdades humanas, de busca pela essência da espiritualidade e da natureza. Eu não. É neste instante que Deus me ocorre. Hoje, Deus é o único que não crê. Deus e seu nome impróprio. Deus de inicial maiúscula. Deus de Sua pretensão de infinito e de existente por Si mesmo. Deus que cria o homem que morre, mas se porta imortal. Mas se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, eu penso, ou Deus não é como diz ou a morte não é como prega. Ou Deus está morto por antecipação ou eu não se pareço em nada com ele. Ora, caso Ele estivesse aqui, eu o desafiaria primeiramente a chupar esta gota de suor de volta para dentro de minha testa – proporcionando a mim uma imagem real a sua semelhança, uma perfeição em grau infinito. Mas não. Como posso crer que há um Deus tão dilaceradamente incapaz de atitudes elementares? O pequeno glóbulo continua a deslizar rosto abaixo. Cubro com o pano o cárcere final da avezinha. Em um movimento preciso e seco, minha mão aberta esmaga gaiola, pássaro, pano, tudo contra o tampo da mesa. Um novo silencio se instaura. Não basta fazer o pássaro sumir: é preciso trazê-lo de volta. Então eu o trago. Então eu o revelo. Surgido detrás de meu corpo e pousado na beirada da falange de minha outra mão, o segundo pássaro bate descompassadamente as asas. Hoje foi seu dia de sorte, eu lhe digo. Amanhã, talvez, seja sua pequena ossada a ser extinta sob o buraco da mesa, debaixo do pano, varrido pra baixo do tapete, esquecido. O meu peito é inundado pelos aplausos simulados, postiços feito cílios em terno rosto, através dos quais a platéia assume diante de mim que sabe a verdade, mas está lá porque gosta de ser enganada. Os pássaros sonham que andam. Eu sonho que posso. Deus, agora, só sonha que morre. 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Amor é colisão

trecho do livro 'A insustentável leveza do ser'.
Foi nesta sentença que meu pensamento se fixou: às vezes é apenas um impulso mesmo. A força dirigida nos atos imperiosos do amor leva a uma conclusão cientifica amplamente conhecida: para que algo entre em movimento é preciso que haja interação de dois corpos.

A física define este impulso como a grandeza que mede o quanto varia a quantidade de movimento de um certo objeto, no sentido que uma pequena força aplicada durante um longo período pode causar o mesmo movimento que uma grande força aplicada de uma só vez. Ora, não é sob estas condições que ternos casamentos e paixões desavisadas nos movem?

Mas claro que esta força de ir ao encontro é, deveras, desajeitada e violenta, como um vento que colide a árvore contra a casa. Muitas vezes irresistível e que leva as pessoas à prática de ações irrefletidas, o impulso de desejos ruidosos possui, ainda assim, precisa serventia cuja pretensão é uma só: tanger o outro.

À distância ou à deriva tem importância neste estado de repouso. Pois que a tendência é a de analisar a quantidade de movimento antes e após a colisão. Nunca durante, porque só se aplica força ao que está parado. Esta é nossa noção mais intuitiva de impulso e, quem sabe, a mais recorrente também. Por esta razão, talvez, uma quantidade infinita de laços nunca se rompam definitivamente. E por determinação completa e categórica de algum âmago supremo de nosso cérebro ou coração, continuamos a impelir força sobre os episódios estagnados da vida. Chame de vontade, de desejo, de ego, de orgulho ferido. Não importa. Chame do que quiser este ímpeto de coragem que movimenta os sucateados amantes.

Mesmo no resguardo sutil que eleva o discurso ao um nível quase cínico, são nas redomas de proteção das distâncias criadas que abandonamos tantas vezes o viver, o pensar e o sentir. O amor é um ato de colisão. Tem que ser. A pergunta é: quantas vezes mais o subterfúgio geográfico salvará as aparências?
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Junho / 2014


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A história de um amor

André e Dorine: conheceram-se em 1947 e nunca mais se separaram. O casal cometeu suicídio em 2007 e seus corpos foram encontrados lado a lado no apartamento em que moravam. Dorine sofria há anos de uma doença degenerativa. André não quis viver sequer um dia em sua ausência. 

Parque Municipal do Varvito - Inverno de 2014.
Joaquina,

Voltei hoje ao parque que viemos juntos pela ultima vez há dois verões. Minhas pálpebras tremulam. Este sol bem pouco cálido parece que vem ocupar, sem matéria, sua presença. Cheguei a conclusão de que a morte não separa ninguém. A vida separa. Porque, cada vez mais, sei que perco a capacidade de perceber com exatidão se fiz sexo ou se apenas tomei um café. Acho que nossos sentidos ficam por demais aturdidos diante dos inevitáveis atos do destino. Sinto-me tão incapaz, meu amor, de lidar com esta injúria que vida conjurou a mim!

A mesma doença que lhe tirou a vida, tomou a minha. Estes anos passaram vagarosamente sem você. Acontece que, nestas falhas de coerência, as coisas passaram do suportável para o passado muito rápido. E eu me vi como se estivesse a testemunhar o mesmo bando de traças que ruiu um armário devorar, agora, uma cômoda, dia após dia.

Decidi, então, que meu corpo descansará ao redor das flores que, na impossibilidade transitória de vê-la, possuem o tom que mais se assemelha a cor de sua pele pálida -  pelo menos em minha memória. Por isso, jogarei meu carro do precipício na última saída da rodovia Helio Dutra, naquela ruela após a estrada serpenteada, em que colhemos magnólias em 97. É a despedida mais fúnebre e também a mais bela que terei tempo de preparar, em um lugar só nosso. Espero que perdoe minha tamanha pressa. Tenho urgência de te reencontrar.

Todo ato de condenação se baseia em algum raciocínio, portanto, seria inevitável que meu corpo não se tornasse vítima desta razão. Torço, apenas, para que minha alma se descosture logo.

Com todo o amor,
M.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

As confissões de James

Já não estou mais cheio de mim, Ana. Mas repleto de nós – mesmo que nós já não sejamos mais eu e você. Acho que não terei tempo em vida de cuidar de suas flores. E quanto a Sabrina, não se preocupe, porque ela não vai me proteger. Mas este seu apartamento foi e sempre será uma cabine no meio do mundo em que eu, você e ela fizemos arte, amor e guerra. Porque Sabrina fez desse apartamento um albergue europeu, e nesse seu pedaço de mundo ela ora me aspira, ora me consola. Eu vim aqui para te perder. E agora a morte é isso?

JAMES
Limite: foi nisso que eu fiquei pensando. Eis uma linha fina que marca o fim de uma extensão. O limite é sempre comum aos dois, sobre o qual pessoas ora se deitam, ora se estranham. E nesse mesmo lugar, tem o costume de se sentirem constantemente invadidas: o limite é isso. O lugar em que as pessoas exigem, mesmo que elas não possam se equilibrar sobre ele, o lugar de confessar.

Eu me sentia como uma espécie de termo incapaz de produzir ação e de fazer reverberar efeitos. Nunca fui influência, ou talvez nunca tivesse me imaginado assim. Ao pensar no limite e nas fronteiras que existem, eu me via como preso a uma eterna elasticidade. Acontece que não é isso que a vida me causou. Foram as relações que tive. Eu fui um homem para além da minha carga, protocolado em ataques e acusações - e, por isso, essas deformações causadas por Ana e Sabrina se tornaram permanentes e perigosas.

É para isso que as pessoas escrevem? Deve ser por isso que Ana se apaixona. Hoje, como há muito tempo não, eu sinto não completar a mim. Mutilado ou apenas imperfeito, sei que, hoje, é completamente possível romper um relacionamento comigo. A minha garganta inflama, flameja – e mesmo que não seja para tanto, às vezes eu me sinto morrer por muito pouco (e quem morre por pouco, por pouco não vive).

É tão horrível a sensação irremediável de magoar as pessoas que gostamos quanto é horrível controlar as pessoas que não entendemos. Houve dias em que vi Ana como uma menina cujo meu cuidado poderia se deitar facilmente sobre ela, da mesma maneira como eu me via nela, eu já tinha me apaixonado por ela – em outra vida, em algum outro lugar. Em certos momentos sentia uma ligação com ela, uma verdade integral entre nós. Acontece que não há desistências para tanto, nem insistências para tão pouco. Sabrina não se apaixonou por Ana como eu, mas por tudo que ela não mostrou, construiu uma paixão alegórica que a servia. Quantas transas nos envolveram esses últimos dez anos? Ah, eu enlouqueceria.

Eu me lembro perfeitamente de ela, Ana, ter dito que me via com olhos de gato – porque foi assim que ela me fez personagem. Em um momento eu era um homem de barbas e dimensões. No outro, eu estava espremido em uma folha de papel. Porque escrever sobre alguém que se gosta é como uma tentativa de fazer com que a pessoa esteja em uma eterna disponibilidade irrisória, na qual ela é lida e lembrada, mesmo que já não tenha matéria nenhuma, nenhum peso. Acho que as pessoas se apaixonam quando menos esperam. E talvez eu também estivesse a não esperar, como quem assume o risco de entrar no mar quando chove.

Todo sexo será impossível se não houver nudez, cada vez mais eu me atentava a isso – pois que as pessoas tiram as roupas para dar lugar aos pequenos espaços em que o espírito respira. Foi por isso que eu quis morrer nu. Para que o meu espírito pudesse dar um ultimo suspiro – não para que eu pudesse voltar a vida – mas para que eu pudesse sentir que não fui apenas um homem doente e apaixonado. Porque a gente simplesmente sabe quando não mata mais a fome de alguém. A vida são memórias – e as memórias que deixei para elas foram como as minhas opiniões sobre tudo que conheci em vida. Nunca visitei Istambul. Mas fui a Nova Iorque nos olhos de Ana, e aos albergues europeus nas mãos de Sabrina. Os homens sempre estarão doentes e as mulheres sempre estarão incríveis. Hoje existe um desenho imaginário que une as pessoas – curiosamente, é o mesmo que as separa. O limite.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Ao labirinto fugaz da memória

o amor é aquilo que nos oferece um novelo de lã no labirinto [*]

Noventa dias passam em um único piscar de olhos. Noventa dias: período de experiência definitiva do fim do amor. Momento em que volta a outorgar a ideia irrisória do descarte. Será que acontece igual para todo mundo? Esta ideia de encontrar-se livre de algo cai com tanta facilidade que é possível usá-la sem proeminência de julgamentos... sem culpa mesmo. Embora haja sempre ressalvas sobre estas omissões negligentes que atribuímos à falta do outro, a memória é um labirinto que instiga o enamorado: não é à toa que, neste dédalo em que se vigila as lembranças, residam tantas confusões mentais.

Acredito que, raramente, o amor aconteça em algum pano de fundo político ou palco aristocrático através dos quais nós, por impulso natural, acabamos por atribuir o fracasso da guerra. Há pouca lógica sobre a qual se apoiar neste cenário. 

Este labirinto que percorremos ora certeiros, ora marginalizados, não traz nada além da desilusão do fracasso. É frustrante estar apaixonado por alguém que decide esquecê-lo; e tanto a memória quanto o passado têm a função de nos humanizar – acontece que, nos corredores de nossa própria cabeça, onde tudo é, antes de qualquer coisa e principalmente, uma história de amor, parece ser inofensivo tentar apagar o que ficou gravado no coração. 

Pois que falar de esquecimento nada mais é que falar sobre a necessidade substancial de ser lembrado; e estamos todos do avesso quando se trata das mazelas do amor. Por isso talvez, seja tão difícil indicar com precisão a causa de um mal nesta sucessão de acontecimentos desorientados, em que os amantes enfrentam o eterno problema de simplesmente se darem bem. Amores são exigentes. 

Fundadas ou supostas, é certo que estas exigências fazem com que a memória acesse diversos corredores deste conjunto de percursos cuja intenção é apenas a de desorientar quem os percorre. Imagine uma lembrança sendo puxada de você como uma corda que se desenrola janela abaixo? E então, a sensação tão próxima, tão real, de que, a qualquer momento, pode-se cruzar com o monstro outro vez? Toda desconfiança nos arrasta a um delírio.

Então, é no centro destas paredes erguidas com tanto esmero que o minotauro dos romances permanece intacto; e toda manipulação tenta dissolver-se. Lendário, histórico, verossímil: não importa. A criatura mítica decorrente de um amor não-natural só agrava o risco de sermos devorados e, aprisionada por suas características metade humanas, metade animais, permanece como uma placa luminosa que contesta justamente nosso juízo mais atroz e definitivo: sofrer por amor ainda é preciso? 


[*] Antigo conto grego: "O mito do Minotauro".

quinta-feira, 5 de junho de 2014

todo navio tem um porto para atracar

trazer aqui, mais embaixo, no mundo das trocas.
todo navio tem um porto para atracar, era nisso que eu estava pensando. mas antes que esta embarcação pudesse demorar-se em qualquer lugar, talvez vagueasse muito como cego no caótico tiroteio do amor (e acho que esta ideia mudava radicalmente algumas coisas). em abrigo natural ou artificial, a instalação que recebe os amantes é como um local físico em que a ideia do refúgio se torna concreta. neste percurso da viagem e entre um cappuccino ou um gole ardido de jose cuervo, o tempo agia como um viciado que dava seu próprio valor, peso e medida às coisas. ora, então isto a que chamamos de amor - ou de zelo por falta de atrevimento maior - firmava, não somente a característica daquilo que é recíproco, mas também, naquele instante, a situação daquilo que permanece afastado. o amor continuará a zelar, mesmo à grandes distâncias, é verdade. acontece que justamente neste espaço entre a atonicidade platônica da paixão e a simplicidade da pele que não vem, a vigília do amor deixa de cuidar e passa a velá-lo. põe um véu sobre seu rosto transfigurado, desfigurado, irreconhecível. faz como faria o pranto de uma mãe sobre o corpo do filho estirado no chão, morto, em razão da estupidez ímpar de um acidente. ao passo dado não se retorna, então, amor e óbito não são casuais. talvez por isso o refluxo do pensamento sobre esta ideia seja, assim, tão frequente. o ancoradouro do amor permanece à esmo no mar de algumas vidas. a pergunta é: de quais delas?

domingo, 25 de maio de 2014

A bordadeira | 3

'é com veemência que o amor se nutre dessas comparações' 

Já passava das onze e meia. Fazia pouco mais de duas horas desde que chegara a seu apartamento. As paredes haviam estranhado claramente que eu, desta vez, não estava acompanhada de Joaquina. Tive que trabalhar até tarde e ela teve de fazer uma viagem de emergência. Tudo parecia inanimado sem ela. Ao mesmo tempo em que me preenchia a ideia de nossa intimidade que me permitia estar ali, me tencionava os músculos saber que teria que sobreviver àquela noite sozinha. Diante de sua ausência, o ruído das aeronaves aumentava exponencialmente a cada vôo como se buscasse despertar cada um dos objetos pousados sobre as estantes, no quarto e na sala de estar. O barulho alertava aqueles filhos órfãos. Era como se o tempo tivesse parado ali. No quarto de costura, o manequim assemelhava-se a uma estátua marmórea e imponente. Nunca havia reparado tanto nele. Aquela silhueta era a representação de seu corpo humano ausente. Senti como se não houvesse desvendado nem mesmo seu primeiro nível de pele. Não perfurei nem a primeira camada dela por completo. Eu me sentia uma faca de fino fio, cortando o apartamento com a minha presença como se corta um pedaço de derme rente aos pelos. Uma precisão tão respeitosa que, na minha cabeça, beirava o desrespeito. Eu enlouqueceria ali? Os objetos emitiam informações radioativas em minha direção. Eu era um órgão estrangeiro naquele organismo perfeito. Eu, um coração sozinho que imploraria pela não-rejeição. Imaginei que eles pudessem me arrancar dali, como fazem centenas de pequenos homens que imobilizam um gigante austero no meio da mata e o movem para outro lugar qualquer. Tomei um banho rápido e, em seguida, me apressei nas tragadas do ultimo cigarro que me restava. Deite-me. O farol dos automóveis incidia um feixe de luz dura sobre as bordas costurados do manequim no quarto. A sombra se movia pelo cômodo inteiro. Senti como se sua alma dançasse e imprimisse sua forma nas portas de madeira do armário, no chão, na superfície de seu criado-mudo. Seu cheiro inundou tudo. Era seguro estar ali sem ela?

sexta-feira, 9 de maio de 2014

As estações | Ao outono do meu pensamento

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

SEGUNDA PARTE
na natureza, toda queda vem a propósito

Os dias seguem áridos e mornos. Eu balanço entre a sensação de exibir a cauda multicolorida de um pavão e contorcer o corpo como um tatu-bola. Creio que nenhum pensamento será capaz de concluir-se. Sinto-me abrindo milhares de portas e pequenas passagens a gerar corredores de ar. Estes sopros subterrâneos esforçam-se na tentativa de me aerodinamizar enquanto meu corpo impele ajuda, desdenha resgate. Todo pensamento é um imã aqui.

O outono sacode grandes lençóis de ar ao redor do universo, gerando este vento fresco e cálido. Esta estação volta a exercer sobre mim a pressão típica dos romances quando são rompidos. Uma natureza inteira tomada pela leveza insustentável da queda das folhas. Sinto uma necessidade irreprimível de dormir.

As garrafas de vinho estão largadas aos quatro cantos da sala de estar - hoje, em particular, esta casa me parece um pouco menos estrangeira do que fora ontem. Talvez em razão de eu ter depositado meus pertences em lugares estratégicos que, ao invés de refletirem minha solidão, a pudessem absorver. Aos poucos, isto deixa de ser um ato de ruir.

Há dias não reconheço o contorno de meu rosto. Uma face de cera bruta, malacabada, que emoldura os lábios tintos pelo roxo dos vinhos. Sinto até o peso dos meus cílios, batendo com violência como fazem as árvores de lá de fora, e nos intervalos desta insonolência, a vontade delirante de dormir. Meu humor é ríspido.

A gravidade é um fenômeno tão natural! Mas talvez só possa estar em queda aquilo que muito se precipitou. Ora, é justamente neste atirar-me violentamente sobre e contra a ossada restante do amor que me antecipo frente aos ataques que, outrora me feriram as pernas, mas que agora me desarmam de forças. Sinto-me desmontar. Minha maior fortaleza é a elegância da minha recusa.

Pela primeira vez, acredito que este cerco que fechei ao redor de seu nome será de alguma utilidade. Este sítio no qual eu lhe obrigo a fazer morada, repele minha presença. Ainda bem. Cada célula do meu corpo milita em razão desta causa agora. Não sei se foi Deus ou se fui eu. Apenas sei que funciona.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A bordadeira | 2


'quiçá já tivesse habitado aquelas paredes antes, não sei' 
(...)

Joaquina me aguardava na porta da universidade e fumava o cigarro típico das esperas. Ela entrou no carro e nós nos cumprimentamos. Fui tomada de certa paz desarmada. Eu me senti nua.

Ela sugeriu que fossemos jantar em um pequeno bistrô ali perto, no mesmo bairro em que morava. Assenti com a cabeça. Tanta urgência que autogoverna as cidades grandes havia desaparecido. As ruas pareciam enormes tapetes desenrolados com o término a perder de vista. Um infinito de asfalto. No exterior do carro um silêncio inédito. Atravessamos dois ou três faróis até que chegamos ao restaurante. Os nossos encontros sempre haviam sido marcados por longos espaços de tempo, muito embora nunca tenhamos deixado de ter contato. Quem sabe em razão das manobras temporais e amorosas que o destino impele sobre nós, somos outorgados a viver, a conhecer, a viajar, a amar e, porque não, a sofrer, para que, depois de muitos anos, possamos retornar mais ilustres e sábios aos fragmentos que deixamos em nossas próprias terras a germinar. Somos responsáveis por lavrar nossa alma. Era então, no lavradio de nosso encontro, que eu era tomada de sobressaltos por conta desta sua desenvoltura. Eu estava determinada e estava, ainda mais, determinada a não personificar minha postura, eu não me prostituiria. Percebi que eu não estava projetando, já eu estava vivendo - o que mudava tudo.

terça-feira, 29 de abril de 2014

cartas marítimas | 10



Fildsville, outono de 2025.

fildsville, 07 de junho de 2025.

querida maria paula,

iniciarei este contato dizendo o quanto sou grata a você. diante da notícia de sua mudança, acredito que meu desejo de movimento tenha se excitado fortemente também. é curioso como estas vontades intrínsecas dos amigos nos embatem com surpresa e desapontam em nós ramificações que dificilmente somos capazes de perceber no instante em que acontecem. mesmo após tantos anos, justamente porque me desperta para encargo de meditar todas as vezes, sua amizade cultiva esta unicidade e valor para mim. obrigada

confesso a você que minha cabeça tentou organizar a ideia que você me propôs. o dom e a vocação talvez sejam elementos muito semelhantes e, ainda assim, muito desiguais. acredito que a vocação nos unifique, sabe? uma propagandista, um pregador in loco que não descansa nunca. ao mesmo tempo, o dom nos mutila nestas pregações, nos rasga, é nosso criminoso, nosso pior juiz.perdoaremos pela nossa vocação, mataremos por nosso dom. 

sabe, minha amiga, acredito que é preciso muito talento para que se possa crer (com verdade) no quanto ele é insuficiente. não sofra por imaginar que lhe é pretensão o ato de auto-abençoar-se com este dom. todo dom é uma virtude (muitas vezes às avessas), mas é, principalmente, a virtude da disposição constante que busca praticar o bem ao invés do mal - e o bem também se faz desajeitadamente. por isso, não me ocorre nenhuma razão para que transforme isto em um simbolo perverso. jamais de peso. porque se as virtudes originam-se em alguma reunião do cosmos alheia a nossa vontade ou se nossos orixás costuram estas disposições ao redor de nosso espírito, não importa; escrever é um ato cartilaginoso que exercemos para formar esta carcaça, para proteger este íntimo com que fomos presenteados. aquilo que não é uma escolha não pode ser considerado mérito ou fracasso, lembra que comentamos isto certa vez? se é vocação, é disposição, é virtude, automaticamente é dom. esta sua aura abriga muitas palavras e, todas elas, a levarão a escrever. quanta diferença faz qual nome daremos a este ato? axé, mulher!

também acredito que nossa predisposição de raciocinar, de dinamizar ações e fatos dentro da lógica, permanece de mãos atadas com nosso corpo. poderia facilmente dizer que "ficaria louca do corpo", sabe? pois que minha mente faz parte deste adorno físico que sou obrigada a carregar, de certa forma, no mundo em que vivemos este presente. a saúde de nossa cabeça pode fazer padecer o corpo, minha querida. perdemos dezenas de quilos durante a vida por depositarmos preocupações em ações tão frívolas enquanto nosso eu carece de nós.

estou em dúvida quanto minha capacidade de expressar clareza, hoje, em particular. no mais nobre sentido, estas cartas sempre serão finitas para nós. vê nossos braços se estendendo?

um beijo grande e a saudade de sempre,
ana.

ps. envio a você as fotos que fiz durante este outono. nosso jardim tem estado tão agradável estes dias. dividí-lo com você teria sido de grande felicidade. espero que goste!

segunda-feira, 31 de março de 2014

A bordadeira

'esta máquina é uma casa de morar'

Para ver, então, pr'além dos limites hipérboles de toda convivência, foi importante ter perdido um pouco a nitidez do olhar que tantas vezes havia limitado e ocultado a vocação do resto dos sentidos. Antes de tudo, foi o desejo de comparecer que nos uniu. “Hipérbole”. Esta palavra martelava na minha cabeça, como uma porta dando pancadas no batente da parede uma, duas, centenas de vezes sem nunca se fechar. Foi preciso levantar, fechar a janela, bater a porta e sortear uma nova palavra que pudesse ocupar com menos exagero meu ciclo de redundância mental. 

Tanto havia gostado daquele fragmento que decidi dedicá-lo a ela. Mirando como alvo seus olhos, eu lhe disse: Joaquina, este pedaço de prosa é seu. Inteiramente seu. E por ter sido meu um dia, ele é nosso agora. Sua respiração estava terna e seu olhar era sólido. Joaquina levantou-se e foi até o aposento em que costurava, logo após a dobra do corredor. Não demorou o tempo de uma tragada. Na volta, ela amarrou uma pequena fatia de tecido ao redor do meu dedo e pediu que fizesse o mesmo com o dela. Acho que nunca esquecerei. Nós nos casamos naquele instante. Naquela tarde cálida de outono. 

(...)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

métrica do inquilino

é sempre difícil falar de sua vida.

tuas pontas dos dedos
e teus calcanhares trêmulos
ainda buscam na saída da porta
os vocábulos, os últimos vínculos.

as mesas sozinhas do bistrô
assemelham-se a um cubículo claustrofóbico
aonde um dia tu fizeste lar
e hoje, a doar lembranças,
esvazia-se ainda pelos passos dinâmicos
que te coalha os músculos nessas andanças

não há certeza mais à deriva que esta
não há tentativas de te inundar boca
de depositar no outro
o corpo e o copo
largados ali
já sem rijos olhos sob os quais existir

foi abandono na única manhã possível
foi tanto misto quanto crível
tanto farto quanto visto
por nós
naqueles brinquedos de doar cafuné
de axé
e de segredo

mas os poemas aderiram desagradáveis formas
pois já não eram lidos pelos amantes
mas pelos homens comuns
pouco extravagantes
que te tornaste
e que me tomaste, logo em seguida

e assim,
dia após dia
o terno grado do sentimento
assolou-se sobre a travia rotina
de quem virava
cada vez mais e amiúde
de si mesmo
um inquilino

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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

As estações | À liquidez do verão

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

PRIMEIRA PARTE
o calor é a forma de vivacidade da expressão

Os dias seguem quentes e úmidos. Tudo brilha na refração da luz que penetra nas gotículas de suor sobre a pele. Um pouco mais para baixo, cada fibra de cada músculo também transpira. Tem sido dias de pouco sexo. O ultimo ardido contato que meu corpo fez com qualquer outro foi numa noite de baixa temperatura, há uns seis meses atrás. Esta estação parece um holocausto a me condenar.

Que quentura improvável me provém esta primavera fora de época! Tenho receio até de minha própria indignação em relação a isso, mas sei que, de fato, detesto este clima. Meu corpo permanece deitado no quarto, no piso frio, como um bicho impotente perante o cansaço.

É a vigésima oitava lata de cerveja, apenas nesta semana.  Contei cada uma delas nos intervalos de minha inerte falta do que fazer sob a qual cada vértebra do meu corpo se curva e se estica de novo sobre as lajotas de granito de chão.

Há tempos atrás teria visto isso com tamanha poesia que meu estômago, caso este pensamento me ocorresse hoje, vomitaria imediatamente. Não que o tempo trate de rudimentar, mas mostra uma sabedoria que há vertentes poéticas da juventude que são belas aos olhos rasos, nunca aos olhos nus de quem verdadeiramente se despe.

Uma brisa sem energia cruza o corredor entre a janela e a porta. Ela dura ou parece durar muito mais do que seria para se desejar. Seu zumbido fino é como um adágio aos meus ouvidos. Em uma ópera mental, delirante, meu corpo continua a por-se do avesso. Despejarei toda minha liquidez até a ultima gota? Minhas costas tomam a forma dos rejuntes. Eu, sendo fluído, tomo foma do recipiente em que estou: este quarto não habitual e vazio.

A minha volta, vejo as obvias semelhanças deste local com um quarto de hotel. Lençóis brancos, moveis brancos, madeira clara. Acho que se um feixe de luz batesse aqui, duro e incisivo, suas incontáveis partículas se espalhariam deixando o rastro de uma parte do céu, de um paraíso isolado qualquer. Um mergulho em uma piscina de leite. Tudo branco e etéreo.

Esta pureza exerce sobre mim uma força patriarcal. A mão de um pai que preza pela inocência dos filhos. Se antes houvessem me avisado a respeito deste estado disforme de deleite, talvez tivesse prolongado a embriaguez de minha decisão em mudar-me para cá.

As vestimentas pousadas sobre o opaco branco das prateleiras, os papeis das contas pagas, os cadernos de linhas sem frase alguma: tudo aguarda uma prosperidade, um espaço maior nas entrelinhas deste texto ordinário que passa repetidamente em minha cabeça. 

Estou em branco ou a preencher-me, não sei. Sinto-me um boletim sem voto qualquer, um bilhete não sorteado, uma rifa sem prêmio. Acompanha-me, apenas, um brando soluçar de cadência própria. Meu coração ensaia os primeiros passos de dança a medida que o corpo sussurra o ar. O tom é grave.

Sinto falta.

Sinto os efeitos que minha própria digladiação me causou até aqui. Acho que não me movimentaria para esta cidade caso não fosse pela busca de cura de minha solidão. Nascida dos espaços vazios entre nós, não creio no destino como explicação a esta mudança. Não há objetivos essenciais àquele que está em estado de fuga. Todo fugitivo não passa de um desorientado.

Sinto uma fome que me volta sempre – ora acompanhada de um enjôo, ora a escavar um buraco bem ao centro de meu estômago. Este calor também me entristece. Gostaria de ter novamente sua voz ilustrando estes dias não favoráveis.

Cai sobre meus olhos um abatimento profundo. Ao final dos corredores da alma, eu permaneço deitada e em silêncio neste interior maciço. O cinzeiro tem dentro dele tanto quanto pode suportar. É um pouco como eu. Constantemente os fumantes fantasiam sobre nunca estarem sós.

Acho meu corpo tem criado raízes neste lugar. Pela extremidade de cada dedo, mãos e pés, fixam-se meus órgãos na planta deste solo arredio. Meu corpo absorve o ácido liquido sob a voz de minha sede. Toda raiz é uma solução aritmética inexata. Não há valor real ou complexo agora que me satisfaça. Se não há doçura nos vínculos, as coisas acabam.

Sou apartada. Um filho herege. Extravio-me. Minha respiração segue o ritmo do corredor exausto, um ultimo colocado. Todos seguem montados em seus cavalos de fino garbo, enquanto meus pés rastejam pelo itinerário de terra batida no qual se transformou o caminho tratado, outrora, com tanto esmero.

Tudo tornou-se um grande objeto afastado, cujos meus olhos já não alcançam mais. Eu afundo. Eu sou o observador dentro do olho da câmera que tenta buscar o sujeito do retrato para perto de si. Ao contrário, este movimento se desenrola como a ponta de um carretel infinito. Uma ação frívola dentro de um espaço de distância que apenas separa encontros.
 
Já não esgrimo com elegância, tampouco com sonoridade agradável. Eu também me defendo de sua ausência como posso. 


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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A história do planeta solitário

um fio invisível conecta os que estão destinados a conhecer-se.
independentemente do tempo, lugar ou circunstância,
o fio pode esticar ou emaranhar-se, mas nunca irá partir [*].

Interior, 15 de janeiro de 2014

A

Acho que a marcação de datas nos ajuda a contar histórias. Andei lendo sobre a origem do tempo, dos relógios e, porque não, de nossas próprias necessidades de viver sob estas raias que fatiam a vida. Descobri que os primeiros períodos demarcados foram conhecidos a partir da contagem do tempo que um planeta ou um cometa demorava para completar a sua revolução ou retornar a posição inicial. O regresso do planeta a posição em que estava significava que ele havia cumprido um ciclo determinado e que tinha passado por fases específicas que se repetiriam de maneira contínua. Cada fase possuía características únicas, assim como sabia-se que cada característica jamais aconteceria exatamente da mesma forma - embora aquele fosse um movimento de intervalo regular. A marcação do tempo era possível através desta observação, pois mostrava que todo corpo celeste girava em torno do próprio eixo ao mesmo tempo em que orbitava ao redor de algo muito maior e muito mais vasto do que ele mesmo – normalmente uma estrela que existia como fonte poderosa de energia e força. Recentemente, astrônomos descobriram um planeta flutuando sozinho no espaço fora do sistema solar e sem fazer parte da órbita de qualquer outra estrela. Deram a ele o nome de planeta solitário. Os responsáveis pela descoberta disseram que o corpo celeste tinha as mesmas características de um planeta jovem e que vagueava completamente só. No primeiro momento isso os abateu de certa melancolia, mas depois disseram que nunca haviam visto antes um objeto flutuar tão livremente no espaço. Concluiu-se que o céu também é feito de estrelas que imaginamos ao nosso redor.


Acho que é exatamente isso que desejo dizer a você hoje. Porque a invenção de marcar o tempo talvez seja a única coisa que garante e registra a sobrevivência de nossa espécie ao mesmo tempo em que nos dá a ideia de uma eficiência meio consoladora e meio ilusória às nossas pressas. Ao contrário do que se pensa, não é preciso ser mais rápido, mais eficiente, mais bonito, nem mais satisfatório. O tempo não é a salvação dos ocupados. É porque, na essência, os nossos sentimentos não precisam de tempo, eles precisam de notícias. Quero que você saiba que eu continuo perto de você e que eu sigo existindo e acreditando no ser humano amplo, complexo e absolutamente orgânico que você é - seja em estado de planeta flutuante, seja em plena cadência. Os poetas nascem nas horas em que todos desistem, mas pessoas como você talvez nasçam para ensinar aos que sofrem e lembrar a si mesmo que a urgência mais bonita é a viver sem prejuízo. Desejo que você mude se preciso, transforme quando necessário, converta-se, chore (sim, você precisa chorar!), e volte constantemente aos ideais do seu coração como um filho retorna aos braços da mãe, como eu talvez retornei a você sabendo que aquele era o mais próximo ao sentimento de “sentir-se em casa” que eu já conheci. Olho para você e a vejo com um espanto diferente toda vez, misturado a uma grande admiração. Vejo em você um exemplo. Não deixe nunca de saber que aqui deste lado fala alguém que a ama muito - e que torce pelas suas conquistas tanto ou mais até do que torce pelas próprias. Feliz aniversário.


Com amor
N.


[*] antiga lenda chinesa: "O fio vermelho do destino".

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Carta destinada ao limite

a fronteira está constantemente conosco | M. K.

Demanda-me a explicação se há limite entre a dimensão da poesia e a dimensão física. Porque se há, há maneiras de ultrapassar e transitar ali também. Por vezes, impede-se a si mesmo nesta linha de fogo, ora cruzado, ora brando demais, entre as voltas abissais dentro do hiato mais perplexo de cada frase, o alcance do limite da poesia talvez fosse o local exato onde termina a imaginação e verdadeiramente começa a possibilidade de perda. Perderia as estribeiras, a cabeça, a água lacrimal dos olhos se voltasse a pensar nesta condição tardia de entendimento que lhe abateu com veemência a expressão. 'O que você faz quando conhece alguém?', bom, esta pergunta continua a lhe açoitar a memória como uma ventania devasta um campo aberto - o campo onde os suricatos outrora ergueram-se. Pode uma mulher contar com infindáveis acasos em sua vida, mas deveras há o momento em que o acaso criado no labirinto de sua mente cessa e desperta a busca pelo interesse pr'além dos perímetros imaginários: seu desejo ganha cadência e se torna real, mas um sujeito tão real quanto um homem parado, um vendedor ambulante em sua porta (que triste seria quem deste mal não sofre!). E este cavalheiro a sua frente, por sua vez forte e vigoroso, entranha-se pela porta como se adentrasse as próprias paredes de um estômago e diz, perante seus olhos de plena fadiga, que não lhe concederá três desejos – mas que lhe convencerá, até a exaustão se preciso, de que o desejo inevitavelmente a ocupará em três dimensões. 

Teu desejo logo assumirá largura e peso. Assumirá cheiro. Aceitará toque (e tu deves predispor-te a isso). Dize-me, há algo mais a beira do limite do que tocar a superfície da pele do outro? Fortifica-te sobre a ideia de que o desejo não passa de uma alusão mental a intelectualidade de alguém, mas por qual razão, então, o contato tanto te importa? Haveria de bastar, tu não achas, as palavras simuladas ou mesmo audíveis, datilografadas – que fossem – que existem potencialmente mesmo que sem ação? Cai, pois, em teu próprio precipício de medo, e dá-te conta de que é preciso ver a forma como os lábios daquele alguém se portam ao dizer as palavras que te encantam a mente. Um flautista perante a serpente, é nisso que o desejo te torna - porque todo desejo é, antes de tudo um desejo de causar hipnose no outro. 

Não lhe apagará da mente sequer um segundo de história, mas se alicerçará com tanta certeza neste desejo que ainda há como uma cama no meio da praia de neve: cercada de realidade por todos os lados.

sábado, 4 de janeiro de 2014

o tempo como pedaço muito fino de algum alimento sólido

"toda dor é de coisas não cumpridas"
janeiro de 2014

notou que o tempo em fatias de drummond circulou bastante estes dias. talvez diante de sua incapacidade de dizer as palavras corretas, o uso póstumo da linguagem do poeta tenha caído como luva em suas mãos ansiosas. ao mesmo tempo que a troca do ultimo dígito do calendário a poderia ter enchido de esperança, de alguma forma, este abstrato voto de renovação que fez a si mesma não bastou. precisava comunicar-se - pois que comunicar-se era como estar em relação ainda e, em trânsito, pertencer ao instante do presente do outro. assim como o herdeiro modernista da poesia, a entrega dos versos chegaria a lhe atingir mesmo como uma prosa sem métrica, sem compromissos formais abrangendo a voz literária mais popular que existe: a da saudade. sem dúvida, aquelas estrofes mantinham a essência de um coeficiente de solidão que herdava agora o único elemento que resta das separações: a liberdade. as afirmações se acumulavam ao fim de cada frase. toda poesia, como todo relacionamento, tinha passado pelos três estágios inevitáveis de autoafirmação e crítica. tinha inciado-se irônico dentro do qual se inundava pela possibilidade de ser muito maior que o mundo; tornado-se social, quando o eu mais íntimo deu-se conta de que era demasiado pequeno e excessivamente diminuto diante do conjunto onde existia; e, por fim, concluído-se metafísico em que sua presença orgânica e espiritual passava a equiparar-se ao tamanho do universo em que a realidade tinha, enfim, um sentido e uma finalidade. o temor de seus dedos diminuía a medida que dava-se conta disso. o tempo cortado não alteraria nada. mas se o tempo estava divido em pequenas amostras ou se apenas poderia acometer os outros de seus constantes fenômenos, isso verdadeiramente lhe interessava. a nós importava, pensava, tão somente o tempo disponível do qual estivermos dispostos a viver apesar de sua irrefutável duração limitada. num mundo cujo o sentimento era de uma guerra perene, o tempo talvez fosse mesmo o verdadeiro subsídio do entusiasta, imaginava ela.

(...)