terça-feira, 1 de agosto de 2017

O tempo não cura tudo. Aliás, o tempo não cura nada.

Que todo amor extraviado, volte em forma de poesia.

Dor romântica é como doença crônica, não tem cura; repete-se indefinidamente, permanece. Mantém-se ao longo da vida e talvez este seja seu ofício. É espectro pelo qual passa a técnica, toda habilidade de se relacionar. E o que é o relacionamento, se não a arte da correção? A correção posterior a dor aprendida - mas não esquecida - pois frustração amorosa não é amnésica. E nesse meio, o então amor que mutilou, lá atrás ou recentemente, não importa, que arrancou-lhe o coração às pressas, a sangue-frio, foi aquilo que o empenhou a afeiçoar-se de novo e, conseguiu, diante da demonstração de inédito e singular afeto, fazê-lo sentir-se emocionado e não com medo. Sábio organismo que, mesmo sem coração, reconheceu nas novas leis e ritmo do amor recém oferecido, a chance de tornar-lhe sujeito capaz de amar transitoriamente com os pulmões. É, se você já se sentiu capaz de amar com outros órgãos organizados, os rins ou cada víscera, os músculos se contraindo em benefício de afeto novo e incomum que você, ainda portador do côncavo peito, notou ter ressinificado, essa é a sensação de autêntica liberdade da antiga dor. 

O amor não esquece, mas se reinventa, dá outro sentido à consciência da emoção e da imensa capacidade de dedicação que você pode prestar a si e ao outro. Eu não consigo imaginar alguém que nunca perdeu. Quem nunca teve nenhuma perda, não está entre nós. Conheço, ao contrário, porção massiva de gente que parece viver sem ter percebido que perdeu alguma coisa e acaba sem dar-se conta de que já perdeu, nem que tenha sido o dia de ontem. Essas injustiças aterrorizam. É motivo de muita infelicidade essa expectativa que se tem de ser alegre e feliz o tempo todo; porque, se você for capturado por questões mais existenciais, deve procurar um médico - tem-se essa ideia de que a infelicidade é improdutiva. Há algo de politicamente perigoso nisso. Às vezes, a vida mais saudável é a vida absurda, a de uma absurdidade boa. E por isso, o tempo não cura tudo. Não cura nada. O tempo, de maneira exclusiva e sem dificuldade, apenas desloca o incurável centro das atenções para o espaço da ausência do interesse, perímetro distante. Não é a salvação dos ocupados pelas mágoas constantes, dos que idealizam a angústia ou a ludibriam, ou dos que se recusam a senti-la. O tempo faz encarar o diagnóstico de ferido de guerra, sair do delírio, desprender a ação que está amarrada ao dilema de não amar nunca mais: é isso que faz o intelecto forte iluminado pela dor. O coração se reconstruirá mais gentil, acredite. O passado não é mais de jurisdição própria. É só o SAC do nosso futuro. E o presente, bom, este é um pleonasmo. 

terça-feira, 4 de abril de 2017

A ideia do dia eterno

"uma flor que pudesse ser eterna."

Mais um domingo alarmado que perfurou nossa desavisada intimidade. Ao alcance do que pude avistar, alguns vizinhos celebravam uma possível festa de aniversário no anexo do prédio em frente. No sexto andar, duas mulheres mergulhadas nas luzes piscantes do televisor, assistiam a algum usual programa dominical e fumavam cigarros, concentradas, mas com certo aspecto entediado diante dos minutos gratuitos e infinitos característicos deste dia quando se aproxima do final. Mais abaixo, no primeiro andar, um grupo imenso de pessoas, sentado ao redor da mesa circular, formava a típica congregação familiar, com avós, tios e crianças pequenas. Nós, da sacada recém-telada, observávamos, com as mãos pousadas uma na outra, sobre o centro de nossa pequena família nuclear, a lua em fase crescente e o céu manchado de azul marinho abraçar todas aquelas diversas situações de afeto e comparecimento. Olhando pela trama da rede, meio dispersa e flutuante, imagino que nunca houve antes uma circunstância que tivesse me invadido com tanta prontidão de felicidade. Cobicei que este dia pudesse ser eterno. Cuidaria da memória deste dia como quem se dedica ao cuidado de uma flor que se pretende durar para sempre. A memória tem mesmo essas aspirações irrisórias por eternidade.

Os cientistas não teriam conseguido imaginar a ideia do dia eterno, escrito trabalho literário ou perseguido veemente este entendimento mental de que este poderia ser um conceito verdadeiro e autêntico diante dos olhos: o dia aleatório de nossa própria escolha e, porventura, sem alicerces conscientes, que decidimos fazer durar sem fim na lembrança.

Conforme ela falava, sentia suas palavras e elas tinham gosto de café. Nossa convivência, tão protegida pela aparência da banalidade naquele instante, era para mim como um raio de sol que escapa da nuvem em dia enevoado. Meu ritual de iniciação. Sua existência me validava de forma positiva, me atestava em presença, em testemunho diante da vida, sem desafetos. Acredito que, num tempo muito breve, superei quase que completamente o meu medo - que era o de ela não existir. Senti minha sensibilidade perder as rédeas do próprio governo. Uma anarquia sentimental esclarecedora e precisa. "Ganhei na loteria sozinha", pensei.

Foi durante este estreito trilho por onde a babel de sentimentos se espremia para caber e passar, que pude ainda me dar conta de que, mesmo no caos, existe certo algorítimo organizado. Pela primeira vez, reconheço minha intenção e sinto que sou capaz de dar conta do desejo. Nem tudo são dores - mesmo em paráfrase dos ditados mais populares. Como era ousado diante do meu acanhamento permanecer ao seu lado. Senti a cidade como uma palma. Passei a querer dispersar a morte de toda forma possível. A vida enorme se aproximava, tirando da sugestão ambiciosa da morte a sensação que rondava este domingo sem precedente que estava absolutamente fora do tempo e do devir. Os amantes precisariam ser cuidadosos nestes intermináveis primeiros dias e talvez nós fossemos mesmo; um cuidado misterioso e fascinante e que movimentava a vida adormecida como se movimentam as partículas de água diante do estímulo da temperatura.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

As mãos

"o grande rio" (1990) | nanquim sobre papel de leonilson.


O corpo me lembra algo que já desejei, mas não sei exatamente o quê. Talvez a textura da pele ou da palma da mão. É, as mãos são tão únicas. São conexões. Uma mulher com as mãos cheias de vincos e veias saltando do plano rasteiro da pele, conforme gesticula ao falar. Dediquei silencioso tempo a reparar em cada dobra e, ainda assim, penso ter deixado escapar algum detalhe essencial ou vertiginoso, talvez, ali onde as unhas curtas aparadas a beira da ponta dos dedos, alguns ligeiramente tortos, nada absurdo, mas longos também sem exagero ou falta de proporção, se encontram formando uma imagem quase familiar, acentuando a ideia de que há algo nela que já conheço. Penso como pude não ter reparado nessas mãos semanas atrás, quando nos encontramos na porta do concerto. Talvez estivesse rodeada de maneirismo, e nada veio ao encontro, à dimensão visível. Acho que só se pode ter a atenção lapidada, com todos os elementos necessários, depois de algum tipo de autorização prévia ao toque, mas posterior a tomada da consciência, porque, assim, a ideia da mão se torna a mão tocada por mim, concreta, passível de descrição; enquanto a mão que não foi tocada é como corpo celeste vagueando no espaço, é autentica, mas não pertence a ninguém, a não ser a si mesma, não faz parte de história alguma, é como se estivesse perdida, não tem ligação efetiva com a realidade, não existe no plano da importância, pro outro - é somente subsidente, perdura, na ordem etérea da imaginação, sem vínculos. E o que seria de nós sem a expectativa da continuidade, nessas horas, em que sinto através de uma percepção quase intuitiva que de longe pareço normal, e de perto, pareço distante. E nesta fina lacuna, em que observo o passar dos dias com os olhos mareados, o corpo tenta deslocar-se, ainda que na direção de tais ásperas mãos, cujo embate ainda não sei se vem como roubo ou maravilha. No futuro, sei que há de tudo dar certo, quando menos se desespera.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Sobre uma epifania matinal qualquer

"my yesterday was blue, dear".

Observo o café passar e percebo que minha memória não é capaz de trazer à lembrança a quantidade de colheres de pó que coloquei no dia anterior. Basta que decida por três e acho que deveria ter colocado duas; se decido por duas já percebo uma sensação que me afronta, o resultado inevitável de uma bebida fraca que será meu destino naquela manhã que me deprecia por antecipação, sem energia moral, sem firmeza. Não confio em que aceita café ralo. Bato os pés e sinto uma tosse para dentro. Mal passa das sete; e diante desta evasiva alegação, a pretexto não se sabe muito bem de quê, provoco o surgimento da ideia construída a partir de nada, por geração espontânea - como religião ao afirmar a existência de um deus, e dizer que ele é homem, imagine - e que faz com que, por deleite e comoção, o café diferente se torne algo como o café único; é uma iluminação. eu paro. ele é exclusivo, penso, é privilegiado, o café possível, e que constrói uma memória também ímpar mesmo que sem muito intuito de se firmar. O primeiro gole me faz lembrar com mais clareza, os seguintes, dão certa visão distinta e penetrante das coisas que não apresentam precedente, tampouco, se repetirão e, assim, todos os dias, nessa ausência aparente de ordem, sei dos instantes em que ele esteve perfeito, dos dias em que parecia anêmico (e detesto), daqueles em que não passava de uma espécie de intragável tinta preta; percebo, hesitantemente, que essa mudança periódica dentro da rotina pragmática deixa a realidade menos espessa, faz dela digerível, algo com o que posso conviver e que me agrada, e atesta do jeito mais modesto que talvez possa existir que nenhum dia, nunca, em nenhuma circunstância pode ser igual ao anterior. and that's ok.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Me decifras, por isso te devoro.


e você, está curada?

"Eu ainda me lembro, ela ficou procurando pelo meu corpo se eu tinha alguma nova cicatriz. Cicatriz é forma que o tempo encontrou de se tornar concreto, palpável diante dos olhos. Fosse queimadura de panela, arranhão de unha de gato, corte no dedo por folha sulfite, rasgo no joelho, tatuagem inédita. Pouco importava. Na minha cabeça, aquilo representava ou era uma maneira de nos atualizar diante do tempo que tinha passado. Dedicamo-nos a esta busca silenciosa por alguns instantes. Descobrir as cicatrizes físicas do corpo durante o tempo da separação era como ver o quanto tínhamos sofrido e curado na ausência. Porque naquelas porções de pele regenerada, a vida tinha achado uma forma de se reinventar. A vida tinha voltado a ser possível, voltado a crescer apesar das impressões duradouras deixadas pelas ofensas, a ingratidão, a teimosia inevitável e tanta doçura, e tinha achado uma maneira de crescer sobre a ferida e estancar a dor. 

E quanto aos tecidos menos superficiais, quanto àquilo que estava e está o tempo todo sob o verniz da vida atraente, mais embaixo, no mundo das trocas, aquilo que os olhos não vêem apesar do corpo nu, com certeza, pediria mais que toque. Aquilo que o corpo fala ocasionalmente, mas não diz ou não entrega nas palavras logo de cara. Pra saber o quanto realmente havia sido refeito na vida que existia dentro de nós, concluí que seria necessário um pouco mais de tempo; mas diante daquele encontro, eu também quase pude afirmar que havia uma nova disposição, uma facilidade a qual, desta vez, não havia sido preciso forçar nada".

terça-feira, 28 de junho de 2016

o tempo passou. você nunca foi embora.

"the girl with the cat in her eyes"

MEMÓRIAS DE UMA DATA ESPECIAL

a data especial é como bandeira fincada na face da lua. é estrela cadente no olho do furacão. a data emblemática é marco-postal de um encontro revolucionário na estrada de terra por onde se espreme a ordem da vida. indica o dia que aconteceu o que ninguém pode prever, nem atestar. nesta data estão as conversas intermináveis e os diálogos imperfeitos, as primeiras disposições da alma, os recados escritos em guardanapos que vieram depois, também estão lá; na data, está a historia das pessoas que amam inteiro e das que mostram só metade. do amor que desdenha, mas compra. a historia de quem chega ao êxtase. de quem parte do zero. de quem vem com as asas quebradas, a história de quem nunca foi ensinado a voar. a história de quem presenteia com um disco de lançamento, de quem assiste a um show, de quem traz suvenires de uma viagem, de quem canta florence a noite inteira. é a história de quem demora pra se despedir, mas tantas vezes chega atrasado e sem cumprimentar com beijos. de quem bate a porta do carro na briga, pega chaves de volta, de quem se omite na segurança da imaturidade. a data traz a história das paixões que balançam pêndulos dentro do coração, mas são incapazes de garantir entrega na festa na intimidade. a história de casas cheias gatos, de sonhos cheios de planos, de dias cheios de mágoas e de solidões que se ampararam enquanto puderam. a história dos clichês mais óbvios, das terapias mais doloridas, das saudades que estrangulam. essa data é também a história provando que existe amor que falha, mas ama; que o passado é o algoz da memória e a memória é o algoz do futuro; a história  mostrando que impossibilidades não são faltas de amor muitas vezes, mas de jeito. mostra que querer não necessariamente significa possuir capacidade alguma, e que ter poder não quer dizer nada diante da felicidade do outro. a data notória mostra que muito frequentemente as cartas endereçadas não chegam na hora certa, que as palavras nem sempre estão dispostas a aguentar aquilo que quem as escreve está disposto a se propor e que certas coisas não são objeto de contrato. mostra que o tempo passa impaciente e raras são as vezes em que é possível notar isso. essa data mostra que estar apaixonado não é uma condição de passagem, mas de pré-requisito de embarque. mostra que a companhia idealizada não é exemplar como se imagina, e que em todo momento pode-se escolher se isso é sinônimo de humanidade ou de fator insustentável. mostra que o erro vem da imposição com a mesma força que a imposição vem do erro e que essa bandeira cravada na memória é, enfim, como reflexo atrás de todo espelho, um nódulo da própria história de quem a protagoniza; que ela é o marco zero de toda continuidade, o ponteiro da bússola apontando pro norte abstrato, uma singularidade, uma essência inevitável. de nós.

28 de junho 2016

segunda-feira, 2 de maio de 2016

a ideia das bolas de feno



Estou tentando imaginar o que me trouxe até aqui. Tentando tomar conta da dor antes que a dor tome conta da vida. Faz um inverno que me impulsiona a permanecer em repouso, regrada a pequenez deste espaço. Enquanto passa o café, penso que deveria ter enviado aquela mensagem de "bom domingo" meia hora mais cedo. Acontece que sempre achei a prontidão intimidadora e o atraso irritante - e isso me colocava em certo lugar dialético, no centro de um escopo filosófico com o qual eu me sentia sem condições de dialogar. De um lado minha agilidade que se desdobrava com destreza, do outro as delongas das minhas carências que tem apenas a função de importunar quem as recebe. Senti meu peito ficando ligeiramente sem ar e tossi para dentro. Tenho vinte e sete anos e a cada dia aumenta minha sensação de estar distante da vida, mas perto de quem não importa. E neste jogo de palavras que só seduz o negativo, o cético, o derrotista, o chamado das iluminações poéticas passou a ser difícil de ouvir, ainda mais para mim que, justamente agora, nunca tinha me sentido tão sã. Que horror.

O futuro parece que não chega; só o passado que aumenta, como uma bola de feno rolando ladeira abaixo. Ah, as bolas de feno. A ideia do totalmente deserto, do tédio total, da falta de almas vivas de fato, a zona morta - com exceção do possível herói que avista - não me lembro quem nem qual - talvez, eu mesma seja a pessoa quem vê, alguma coisa que está por vir. Mas eu acredito. Porque antes de tudo, vem a crença de que essa coisa sem nome que se aproxima, essa imagem da bolinha inofensiva, tediosa e rolante, quem sabe, seja a mensagem que preciso para rever meus conceitos. Ou posso ignorar e apenas rir da escritora lunática que tento me tornar? Que nasci sem ser? E que acabou restando que eu fosse, bem, apenas eu?

Acho que até mesmo para esta solidão programada, inevitável, em que sou o avarento que conta as horas para ficar só, a rotina que acabou com o amor, lá atrás, agora parece me fazer muito sentido. A rotina acaba com o amor porque ninguém suporta muito a realidade, era isso. E este era também o cerne da dificuldade de tantas relações; a problemática mais básica, a mais rudimentar antes de toda poesia: a urgência de realizar coisas incríveis na contrapartida de proteger o amor sob aparência da normalidade.

É o café coado, a mosca que pousa sobre a casca torrada do pão, é o batom que foge da margem do lábio, a camiseta do Hard Rock Café. Talvez o tédio minimo dos dias seja essa célula-tronco de toda busca. O déjà-vu de uma vida inteira. O mainstream dos apaixonados, dos aborrecidos, daqueles se arrependeram na pressa ou na pausa. Perco o ar, sirvo café. E, no fim, essa imagem da bola de feno é capaz que me salve, porque se aproxima causando em meu coração desestimado o despertar de um cuidado singular, cheio de falha, mas a mesma sensação que tenho quando tomo esse café nesta xícara fina. Incomoda, mas passa. Fico adiante de mim. Fico imaginando o que me trouxe até aqui. E talvez tenha sido simples, na verdade. Dosar para ver a simplicidade - nem que fosse para ver a simplicidade que é a simplicidade do fim do amor. 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

ensaio sobre os apaixonados

"Em um quarto cheio de obras de arte, eu ainda olharia para você."

aos que possam, eventualmente, se interessar, o estado da paixão é aquele em que você nota ter trocado toda embriaguez por alguém. é o embaraço diante da vaidade do outro; é cáustico, mas sóbrio. é desmedido, mas bate nas beiradas, nunca é concreto. nesta hora, acho que nenhuma lembrança seja confiável. a paixão é o verbo que só se conjuga no presente; é o interesse que desconhece distâncias, é o que faz o sujeito sentir-se excepcionalmente romântico. é a complexidade de uma geração inteira. é uma voz sutil em tom grave, é uma martelada constante, britadeira que não para; é o algoz da civilidade, é o debandar de uma manada de búfalos. é também o tropeço que faz cair na tentação do outro fazendo de todo porto inseguro, aluído, capaz de comover cada víscera. é a euforia dos primeiros cinco minutos da briga, é o instante que precede o orgasmo; é o que torna o exemplo menos importante a medida que tudo se torna menos importante; apaixonados são todos aqueles que não dão ouvidos, não seguem conselhos, desconhecem a prudência, estão indiciados ou foram eleitos, e decidem sem reflexão, no âmbito público ou privado; saem às ruas desorganizados, nus, vestidos, travestidos do que permanece mais no avesso do que no peito; são imagens vagas, desconexas; enxergam apenas o ponto geográfico do indivíduo que interessa, o centro, a convergência hipnótica de suas iluminações; são delírios que andam, são os sonhadores na terra da liberdade, os militantes da alegria momentânea; os apaixonados são os peixes fora das águas da normalidade, da chatice que embrutece, das cismas que vão e voltam, de nada a nada. os apaixonados estão no hiato entre o nascimento e a morte, na fenda antidemocrática do sentimento, em todo momento, fora de si.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Azul alguém, azul ninguém

em toda espera cabe uma reflexão.


Na memória de uma noite irregular, é como se tivesse durado um tempo singular também. E se o melhor da festa era esperar por ela, talvez fosse mesmo; pois que prefiro pensar ser só mais uma pessoa num universo, num sistema, uma parte desamparada de uma quadrilha também desamparada. Às vezes, tenho a sensação de que não desejo ninguém. Ninguém para dividir nada, importante ou frívolo, ninguém. Cada ato perde um pouco de propósito no tempo apressurado das relações imediatas, então penso que, caso viva com serenidade e sem luxos, terei apenas que enfrentar a necessidade de existência sob a máscara da normalidade e da extravagância tolerável - o que já seria muito. Ou viver sem incomodar ninguém, sem impor minha presença, ou ir embora sabendo que não deixei nada de especial - pelo contrário, que fiz promessas que nunca me caberiam cumprir, que seduzi como me seduz o abismo da renúncia, que não ofereci a ninguém companhia melhor do que teriam caso estivessem sozinhos. Que fui egoísta, impaciente, e que reproduzi cada miúda implicância que fizeram comigo na cadeia hierárquica e cruel das relações que estive. 

 Eu sei que eu prometo, você promete, toda sorte de disposições. E que na presença concretiza-se os intuitos da espera, o beijo, o sexo, a ideia real de que aquela pessoa existe em dimensão, em toque, é verdade; mas é na distância, na ausência que a rotina obriga a viver, que a ideia de encerrar a espera se torna verdadeiramente interessante. Talvez seja por isso que, do encontro inesperado, é preciso dedicar toda delicadeza de sua atenção depois, toda expressão clara de cuidado, porque a distância esfria, despolariza as intenções, ofusca significados e os sentimentos, inevitavelmente, diminuem ou colapsam. Só se movimenta quem se interessa.  

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Tributo

❤ 30.11.2015

Em troca ou retribuição de afagos, elogios, alguma coisa sempre se constrói. Quando uma pessoa se interessa pela vida da outra, mesmo no interesse rasteiro que parece, tantas vezes, não levar a lugar algum, basta um gosto ou um gesto que você compartilha. Meio a pretexto de nada, um abraço, ou um jeito mais atento de olhar, se torna ícone capaz de marcar a sua história, e passa a ter o peso de uma oração que você fez, de uma vela acesa, de uma saudade nos momentos em que não foi possível concretizar a presença.

No meio das concessões que fazemos a nós mesmos, em métodos inventados de permanecer vivo apesar das dietas, das discussões desaprofundadas, da burrice, dos disfarces da felicidade artificial, o assobio fino da consciência manifesta uma vergonha que não aparece em muitas ocasiões.

E, diante da perda, sinto a  imediata retomada da ideia atroz da transitoriedade; e mesmo que tudo tenha a chance de durar um tempo, a vaidade enraizada nesta condição da humanidade que temos, coloca no morto (como se fosse possível escrever esta palavra sem negação) o símbolo do mártir; e ao mesmo tempo que deslumbra a beleza da vida que só termina para o adorno físico que somos obrigados a carregar, mas não para o íntimo, esso conforta, e, assim, as lembranças tem a chance de gravitar através do tempo, diminuindo o peso daquela sensação de estar jogado à mercê do balaio de gato de uma nação desunida, de coração cujo ritmo dá duas batidas pra frente e três passos pra trás.

E essa dor da perda torna-se um fenômeno físico de causa quase moral; e a raiva, a irritação violenta do descaso e da importância sem interpretação. Conflito inédito. Então, penso na desapropriação. Penso que, às vezes, as coisas não são nossas. São apenas as coisas dos outros deixadas no caminho que a gente passou.

Isso alivia?

Isso salva alguém de ter deixado um problema sem solução largado no caminho que outra pessoa vai passar? Ou de não ter ido visitar uma tia doente? De não ter ligado quando pode? Ou de não ter dito que amava, quando teve a chance; ou de ter dito que não amava mais, quando teve essa chance também.

Porque depois, quando a morte chega, quem vai embora está livre. E quem fica, continua buscando significado.

*Em memória da mulher e tia querida, Mary Pacheco, cuja saudade é irreparável. Que sua energia continue inspirando a todos nós.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O fio de nylon da vida

edith piaf - não, eu não lamento nada. nem do bem, nem do mal que me fizeram.
O que você vê, pra onde você olha, em que lugar seu olho pousa. Tudo tem um sentido supremo quando acontece; depois, a revisão de nossas próprias fotografias nos leva ao imaginário daquele lugar que não existe mais, daquela saudade que não volta. Tempo garboso... penso eu. Tempo no qual alcanço conclusão nenhuma a não ser a de que minha felicidade independe da supremacia da minha vontade. A felicidade é um direito de revoga constante; e de tristeza contante cujo conjunto de pensamentos delinquentes tentam subir os degraus e pular para as camadas da superfície. Este relato é tão breve quanto a vida; esta percepção não é nada além de uma tentativa de dizer que a sensação de não estar realizando nada efetivo me invade com mais frequência do que eu gostaria de admitir. É verdade de que o peso desta ideia também foge de mim com astúcia, nunca permanece muito porque o tempo acelerado também transforma a maneira como os pensamentos costumavam se organizar. Acontece que se a vida fosse interrompida hoje, o que estaria no topo ou, ao menos, em minha lista de coisas memoráveis? E uso a palavra genérica "coisas", por excesso de abstração que tem circulado em minha mente. Caso pudesse, me desassociaria de tudo. Principalmente, o vínculo com as preocupações burocráticas do que não é extraordinário. Um passaporte vencido, um filtro de café, o sucesso, a rinite, o câncer, tudo. A vida é um fio de nylon. Um elástico. Quem puxa? Quem se arrebenta?

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Seus ombros suportam o mundo (*)

mana bernardes | instagram.com/manabernardes

MARIA

O cenário é simples: uma sala de espera. Sentada, uma senhora alemã segura a câmera fotográfica de última geração. Resmunga palavras sem vogais com o companheiro. À esquerda, em pé, um casal de turistas, provavelmente brasileiros em lua-de-mel. Atrás da pilastra, um mochileiro barbudo e sozinho. No centro do salão, os estudantes uruguaios em excursão. Uma família italiana, uma adolescente entediada, um menino com Síndrome de Down. Ainda faltam quinze minutos para o início da visita guiada.  Ela, uma mãe solteira, também aguarda. O local: Teatro Solís, Montevideo.

Existe uma semelhança entre todas as pessoas que estão em estado de espera. Um andar inquieto, um contínuo gesto de arrumar o cabelo intacto, conferir as horas. Viver é planejar o futuro. Então, ali permanecem procurando, discretamente, o melhor espaço para se posicionar perto da porta, conseguir o melhor lugar para acompanhar o guia, sem mostrar, categoricamente, estar levando vantagem sobre alguém. Os homens aguardam atentos pelas instruções, como soldados. As mulheres, em deslumbre fictício ou real, não importa, em sua maioria arrumadas, como pavões, exibem-se sobre altos e finos saltos feito agulhas riscando o chão de mármore. Todos, sem exceção, seguram o folheto explicativo sobre o Teatro.

Maria, a mãe solteira a quem me refiro, tem as mãos apoiadas sobre o ombro da filha. Jeito de mulher-mãe. A menina, parada, mas agitada pela incerteza do que está por vir, denota apreensão quanto ao passeio. Há três dias, deixaram a Espanha fugidas de um marido e pai alcoólatra. Cada momento é um destino

*Referencia ao poema "Os ombros suportam o mundo" de Carlos Drummond de Andrade.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Aquele segundo antes do tempo


O tempo passa. Então basta, de manhã, mais cinco minutos de preguiça, entortando os olhos a contragosto de todas as obrigações sociais. A que devo, penso eu, toda satisfação desta companhia que cresce a cada instante, que flui a cada conhecimento trocado, intimidade? A que devo este sentimento nascido antes de toda maldade do mundo, de tanta relação falida ou infundada? Que recompensa é esta que chega a mim - e a você, pois toda esta história também é sua - de repente, sem aviso? Penso que o tempo da felicidade seja um agora tão ínfimo e, por isso, tento me agarrar a ele numa manobra precisa sem medir o esforço. Porque o amor não existe no rigor do controle, no manejo assertivo das ideias, nem na tensão demasiada. Mas na inevitabilidade da presença. Daí a disposição justa e conjunta de ir adiante, correr sobre o trilho do que você chama de "destino" (e eu concordo).

Se a cada encontro que acontece há coincidência em demasia ou apenas  sutil disposição, não importa. Se a cada dia, cada miúda atitude age em favor de nós e até mesmo toda dificuldade vem ao encontro de nosso irremissível desejo de comparecimento, eu não sei. Porque o ineditismo da vida provoca mais perguntas que respostas, mais dúvidas do que soluções, e mesmo no desconforto que é a  ignorância que existe diante do destino que eu sinto, você sente, e todo mundo que se propôs a viver um dia sentiu, ainda assim, percebo a expressa alegria, o empenho extraordinário que você tem em relação a nós. Parece que desta vez não foi preciso forçar nada, só há um habilidoso passar de dias, nosso jeito exclusivo de contar o tempo. A antecipação e o futuro. A gratidão pela condição de facilidade que caiu sobre nós.

É tudo reciproco, obrigada.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Aquele segundo antes do beijo



Aconteceu tudo, naquele segundo antes do beijo. Às vezes, acho que demorou o tempo de uma piscada, noutras de estrada que parece não levar a lugar nenhum aparente, só asfalto. O segundo antes do beijo: o reticente mais interessante, o incerto mais sedutor, todo afeto aprisionado no ar, no tempo da fração de um segundo miúdo. Acredito que o chão tenha diminuído, e progressivamente, a distancia entre o suspiro que passa comprimido no espaço entre as duas bocas e ato do encontro. Acho que não sobrou nada, nenhuma testemunha ocular deste acontecimento único, deste nervosismo óbvio do primeiro beijo que imagina, com delírio, a textura do outro lábio, ou a quentura das bochechas que se aproximam a galope. Neste instante, só existe o silencio do cuidado, de quem busca chegar na hora exata, na melhor hora, na hora inevitável, do contato que não pode mais ficar preso dentro de um corpo só. Imagino a tristeza das pessoas que morreram sem nunca terem vivido este momento. Que vida melancólica seria esta de nunca ter sucumbido a elegante dúvida do instante prévio ao beijo chega. Penso que tenho sorte; mas antes disso, penso que tenho você. E isso basta.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Sobre a beleza esmagadora da ingenuidade do amor


lars von trier.
O amor é um segundo através do qual a avidez da morte se anuncia. Acredito que na disposição justa do raciocínio, a morte apareça como ave noturna, de rapina, garras afiadas e fortes diante da vida. Talvez só discuta o que tem valor; mas certamente nunca é vã. E diante do amor manifestado, proferido por condição única que meu espírito impõe, devota-se por trivialidade, por sobrevivência e nobreza. Acho que é como se a morte se curvasse ante esta beleza. E este amor, por fidelidade ao coração que pratica ato categórico e não de mera contingência, revela sem desmerecer; eleva sem deixar de ser humano; e ampara até à beira da atrofia, sem nunca deixar que ela aconteça. A presença da morte é que permite o verdadeiro ato zeloso do amor. E ela, mesmo que à deveria de definição mais acadêmica ou mercantil, é na realidade, qualquer mínima ideia efêmera de iminente perda que eu possa ter. Só amo o que posso perder, mesmo que por imaginação de fantasmagoria impossível, por onirismo, por ser ocasionalmente cética. Mas quem não é? Por isso, todo esforço praticado neste amor é comovente. Por sua ingenuidade. Por crer que não morre

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

entre nós

insight compartilhado #1
um pouco de perfume sempre fica nas mãos de quem oferece flores | provérbio chinês


primeira parte | tudo que existe no mundo serve para nos afastar.

tudo que existe no mundo serve para nos afastar. como uma memória que é fácil de ser posta longe, o interesse no tempo arredio e solitário que vivo - a única forma que decifrei para frequentar lugares e ter amigos - de repente assumiu a posição contrária. a princípio, quase subjugando minha inteligencia que desacredita no acaso, veio até mim após sucessão de acontecimentos patéticos e até comoventes que me trouxeram até este momento determinado.

o espírito da contradição de toda crença é, justamente, lidar a todo tempo com seu próprio objeto de negação. um ateu falando de deus.

pois que lá está, no rodemoinho incessante das relações, um modelo fiel, possível, segundo a regra, de um rosto que pode durar um tempo. em pausas curtas, minha respiração tenta suprir-se, embora urgente-se para perceber sua distinção sobre os demais. é o pouco de batom que foge a margem do lábio? a lantejoula no chapéu? o fio de cabelo curto? a camiseta do hard rock café?

entre o encontro e a divergência, entre a ficção e a realidade, sinto-me fixa, disponível não apenas para ver, mas para olhar pela segunda vez.

existe sempre o entusiasmo da primeira semelhança, o pavor da segunda, e a coragem de descobrir a terceira - ou a centésima. sinto o mundo como um corredor de portas sempre fechadas, já que a vida parece acontecer apenas dentro de casa, na penumbra do tungstênio comum, no retraimento.

seja na solidez de um cubo de gelo na dose de whisky ou no vaso sobre a cômoda cujas flores balançam leves, a vida põe-se em boa ordem e está disposta a acontecer. nada está parado. o vento canta.

quero ir em frente.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

cartas marítimas | 11


aonde descansaremos nossas almas partidas, fugidas, reticentes?

fieldsville, 19 de fevereiro de 2026

maria paula,

acredito que tenha perdido a noção do tempo, desde a última vez que te escrevi. ou que escrevi, simplesmente. tenho a mania - bastante comum entre os escritores (é o que dizem) - de sucumbir a longos períodos de silêncio. será para me proteger? imagino de quais monstros tenho tentado escapar. se ele mora dentro de mim, bom, é uma casa bagunçada esta que decidiu fazer morada. aportei em pensamentos perigosos, destrutivos, numa sensação confusa de que a desconfiança apenas leva ao delírio aquele que a consome. descobri que a palavra me atrai com a mesma intensidade que me repele. alguma vez já se sentiu assim? como se fosse possível tocar o último fiapo de terra antes do abismo? talvez escrever seja isso. 

livros. sim, comprei muitos livros nos últimos seis meses sem saber quais prateleiras desejava preencher. confesso que me pareceu um ato triste, tantas vezes, já que o amor que sinto é sempre aflito. preciso de paz para ler. mas onde a encontro? na palavra dos outros? ou dos mortos? se é que faz alguma diferença. 

já me senti uma fraude. mas me sinto menos, a medida que envelheço. imagino se isso possa ser um tipo de sabedoria acumulativa da idade ou apenas sábia e nova medida que dou a vida de que uma lágrima não vale o peso de um abandono. 

quem sabe

talvez o heroísmo de nossa sobrevivência esteja justamente em não praticar atos heroicos. eu explico: há anos tenho me esforçado para salvar sabrina. às vezes, dela mesma. noutras vezes, deste amor dolorido que sinto por ela. escrevo sobre a mulher como se pudesse guardá-la numa caixinha de musica sobre a cômoda, longe do paradeiro sombrio de seus pensamentos, de suas traições armadas contra o sentimento inevitável que nutrimos por quem amamos: o desmedido zelo. porque se posso acondicioná-la em palavras, linha apos linha, numa segurança de ciência exata,  porque escolheria viver com ela? não lhe parece contraditório? acho que quem escolhe viver está apenas olhando para dentro de si. 

a alma tem um espelho cujo trincamento do tempo traz estes difusos reflexos. talvez por isso a metáfora que diz 'o amor é um bandido pegando um trem' me pareça tão atraente. o coração que ama foge para o corpo do outro. quem ama não pertence mais a si mesmo. 

ainda aguardo o coração cujo destinatário seja eu. 

um beijo e saudades urgentes,
ana.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A pedra

quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você / f. n.

O escândalo de uma pedra no meio do caminho nunca me pareceu tão concreto.

Às vezes, dou sorte de tropeçar em uma reflexão meio a pretexto de nada, apenas, como quem pega uma mão, de apertá-la muito. Olho a pedra parada no chão árido do estacionamento. Faz dias que a observo. Ora como chanfro diagonal irregular, ora como fagulha de azulejo, meio cinza ou meio avermelhada, e ela me olha, me sonda, toma conta de mim numa esguelha precisa. Eu, obliquamente, retribuo a atenção.

Ela me vê? 
Alguma poesia? ― pergunta-me a pedra.

Para a pedra, a pedra sou eu? A pedra parece um diamante bruto, não lapidado, da concretude de mim mesma. Ela pede uma biografia? Uma ciência? Uma arte?

A superfície só existe à primeira vista, devo lembrar-me. Olho a pedra e ela se torna a pedra vista por mim. Já faz parte de minha vida.

Existe a censura de um pai no olho da pedra. Isto me condena à literatura?

Acho que a pedra também é a mulher que foi embora. Aquela que quebrou os discos, que proferiu meia dúzia de verdades sobre minha conduta. Isto me salva? Gostaria de me desculpar pela ausência da minha mente, mas acredito que cada um se defende das ausências como pode.

Uma pena.

A verdade é que eu estava progredindo para me sentir estruturada, orgulhosamente orgânica de novo, mas agora, diante da pedra, tudo se transformou. O sol cálido incide sobre minhas têmporas. Uma primavera febril a qual a pedra não se assusta.

Já passa das onze.

Deveria estar trabalhando, eu penso, e estou aqui parada, mas suspensa, sem respostas capazes de amenizar aflições. A pressão típica exercida pelo tempo sobre as pessoas quando os romances são rompidos.

Acredito que tenha me tornado apenas figurado pejorativo e considerado pouco inteligente. A funcionária extravagante que faz pausas e a poeta exemplar numa mesma mulher.

Adianta?

Então a pedra é tudo?

Sim, às vezes penso que a pedra é tudo; tudo que restou; e que pode me livrar do naufrágio em vida, ou do único elemento que resta das separações: a liberdade.

Bastaria olhá-la para isso? Gostaria de alcançá-la.

A pedra foi atirada de volta em minha direção; o mundo a devolveu para mim como se soubesse que de um acontecimento trivial, cotidiano, pudesse ser tirada alguma razão vital ‒ ou poética. Tornou-se uma pedra em meu sapato. Uma pedra preciosa em meu sapato.

A PEDRA.

Tornou-se a segurança da minha existência. A garantia de afastamento da morte em razão da estupidez ímpar de um acidente. É, pode ser. Quem sabe ser pedra é estar a salvo; quem sabe a salvo, ao menos, por ser a lasca seca que ninguém deseja tomar para si. Muita coisa errada acontece em casamentos. Será que algum dia serei tão concreta como a pedra, ou tão real? Há uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho há uma pedra. Mas também, que pedra seria eu se não houvesse um meio do caminho para estar?

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Dezembro / 2014

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hoje meu amor não ama

'bloody mary' de maria rubinke

Acordei com o coração na mão. Partido, retalhado na metade e escondido por líquido ralo e opaco, pulsava pouco e sem ordem. Em uma das partes, batia ainda um pouco de vida, um tipo de soluço ou murmúrio, baixo, com pequenas quantidades de ar na superfície, borbulhas inflamadas e vermelhas. Logo ao lado, a outra meia parcela do coração tinha cor mais escura, de ébano, ramificações concretas e granuladas, imperfeitas como a face da velhice;  tomada pela sensação de estar acabando, talvez senil e fraca, presa ao formato côncavo da cama, sobre a qual resisto e conservo esta aptidão de sentir vasta mágoa, senti as veias vazias, epidêmicas, como cordas desatadas pela base de seus nós. Minhas mãos abrigam sem destreza este músculo atrofiado, mas ainda preso ao meu corpo; sobre meu tronco, há o corte com início na entrada da garganta que desce até o limite do sexo; meus órgãos, imergidos no interior rubro do corpo, permanecem quietos, talvez paralisados pela falta de pulso do coração. Tudo dorme; vagarosamente, ergue-se sobre o perímetro do colchão a lombar, as costas, os ombros; sento-me da cama, com o que resta da vida entre meus dedos, olho meu corpo e o vejo no reflexo do espelho da cabeça até a cintura. Estou tomada por uma excitação sensorial, e triste, transmitida à medula por via nervosa ou reação motriz referente ao meu espanto de estar diante de algo tão singular, tão evidente. Hoje meu amor não ama.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

As estações | À concretude do inverno

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

TERCEIRA PARTE
a determinação está no sentido das realidades precisas

Os dias seguem quietos e longos. Horas determinadas por regulares atividades que pratico, sem pensamento ou crítica, com a normalidade de um banho morno ou gole de água em planície seca, árida, de fim a perder de vista. Neste estado privado de calor, de toque, olhos tremem por baixo das pálpebras, num sono leve, frágil, que ameaça trincar ao menor desvio, enquanto esforço-me mentalmente para vencer esta solução finada que a vida deu a nós; estes aborrecimentos, planando como abutres na crista do sonho que se perdeu, da garrafa quebrada, da palavra que já não se volta atrás. você se arrependeu? ou teve mágoas, ou pesou os erros, não sei; muito ou excepcionalmente, o verbo do amor se emprega mal, agora, porque destrata o conhecimento criado acerca da origem, do desenvolvimento de nossa nação, nossa ciência, arte, tudo; tudo criado naquele mundo, baixo, de generosas trocas - e doloridas, claro - mas atadas em nós organizados - primeira e segunda classe - capazes de guiar beijos muito bravos, raivosos, de quem passa a vida a entregar só metade; fosse nos terços ou nos quartos, o tato perdido na distancia está exposto e tem tamanho, dimensão concreta de asfalto, de buraco, de gente que passa e leva, nos carros, toda sorte de carga; pensa-te acima da multidão; eleva-te o sofrimento ao nível mais alto, rarefeito, no teto do ilustre, no heroico, porque a saudade termina logo na primeira esquina; na curva mais rápida, na prosa não lida; surge, depois, dos recolhidos cacos dos copos quebrados, a aguardente, ainda amortecendo a língua mordida, que me autocensura, belisca, impede que seu rosto se forme nos corredores diversos da memória, agredida, pela concretude dos nãos que caem como blocos de neve firmes sobre o teto, sala, como distúrbios em toda casa. Agarro-me ao lençol fino, ao cobertor grosso, e os pés interpostos sem saber se a imagem de sua face vem em paz ou em desassossego; porque se passo desta noite, deste acordo de encontro, se sobrevivo pra existência póstuma ao aborto de nós, posso determinar - quem sabe - que a realidade virá precisa e que você, mulher, também em busca, necessita desta parte abandonada de mim que entalha em você o formato do corpo, do porto que lhe represento; vem, pois, sem as armas da juramentada postura dos que não cedem e aquece-me em espírito, ao menos, nesses súbitos que arranham o céu de nossa própria imaginação. Estou largada nesta cama extensa à morte de minha própria sorte que, num descuido, pode trazer você e, depois, levá-la embora num adeus breve e indeterminado. Vista-me, mais uma vez, no pensamento para que eu saiba, enfim, se colocar nossos corpos um diante do outro é, de fato, comportamento,  desejo, um gesto de zelo que procura não só amar, mas viver. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O amor não se parece com nada

frase-se comigo.

Não é como a vida, breve; nem como a morte, temerosa. Não só como amigo; nem somente adversário. Não é primo, de rasa intimidade; nem pai de tanta ausência. Não é como mãe, nem como filho bastardo. Não é como beijo, nem como sexo que se dá a qualquer um. Não é como a sorte, que passa; nem como a dúvida, que submerge. Não é como doença, que só almeja o fim; nem como métrica, poética, ideal. Não é como xadrez, que vence o rei; nem como fábula, que sempre se salva alguém.  Não é como dor infundada, vai e volta, de nada a nada. Mas isso, também, não é como sonho, quase impossível; nem como a verdade, bem discutível. Não é só como a solidão de alguém, nem como a saudosa carta que não chega. Não é como prosa, como monstro, como sombra nos pés costurada. Não é frase indevidamente citada, prato quebrado, leite com talho. Não é gato em cima do armário. Não é faca que perdeu o fio. Não é o próprio frio, nem um maltrapilho qualquer. Não é o que se quer, nem o que se deseja; porque não é como inverno, que mata sob a neve; ou como calor, que queima toda a pele. Não é retrógrado, nem moderno. Nem de perto, seria só terno. O supor, calma, causa falha. Mas isso, a que não se parece com nada, tomba um pouco mais pro lado do eterno. Talvez seja como Deus, de facilmente negar e depois, primeiramente recorrer. Num choro, num coro, mais ou menos calado, eu - mulher - humilde, trago pra perto o tal dito. Eu o vigio; eu grito, veja!, e, ainda assim, com os mesmos drinks diante dos mesmos sonhos, o tal "isso" não se parece com nada. A toda hora não se parece com nada. Em nenhum lugar se parece com o nada. O amor não se parece com nada. 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Deus, nome impróprio

A ideia de Deus é uma ideia atroz.

Este é lugar em que se testemunhará um ato trágico: um pouco da morte de Deus. Não sou assassino a discorrer devaneio, tampouco criminoso em potencial. Não. O veludo suspenso a minha frente se abre e me revela parado, inofensivo. Aqui jaz apenas um homem ordinário diante de uma platéia comum. Uma gota de suor escorre, estou vivo. Uma senhora ergue o pescoço, é curiosa. O bom truque precisa de muitas provações. O velho, o paralítico, a criança, a puta, os guardas: é preciso fazer com que cada uma destas pessoas duvide de mim. Eu avanço três passos ensaiados em direção a mesa no centro do palco. Ela é simples. Sobre ela, a gaiola abriga um pequeno pássaro. Sobre os rostos, há silêncio inédito. Sinto-me ilustrado, cultuado. Este é um ramo em que as pessoas apreciam a ilusão – embora não seja o único. Eu retiro um pedaço de tecido cintilante do bolso, um objeto corriqueiro como tudo a minha volta e nesta vida. O único som que reverbera é o batimento das minúsculas asas, tão aceleradas quanto o piscar da luz de um estrobo. Quanto mais o pássaro se debate na gaiola, mais minhas mãos se aproximam da imundice que cairá sobre elas. Os mágicos apenas fingem fazer aquilo que os magos praticam por excelência. Os mágicos são homens como eu, invejosos, mortais, que sujam as mãos na prática de toda sorte de prazer. Então, a ilusão da magia que pratico é a de ludibriar a platéia. Do meu o poder de convencê-los de que estão olhando atentamente, prontamente, de que sua ignorância humana não os condenará – de que o deleite sujo pode ser irreal por um dia, por um ato, por um momento, enquanto os aproximo da obediência cega – tal qual a divindade faz ao lhes privar o juízo –, e os afasto com seguidas atitudes corrompidas contrárias as da verdadeira fé, da fé genuína, que abre os olhos diante do milagre. Estou disposto a contradizê-los incessantemente porque a dúvida é o motivo pelo qual retornam. A ausência de magia é evidente. Só os magos são os verdadeiros guardiões do desenvolvimento integral das faculdades humanas, de busca pela essência da espiritualidade e da natureza. Eu não. É neste instante que Deus me ocorre. Hoje, Deus é o único que não crê. Deus e seu nome impróprio. Deus de inicial maiúscula. Deus de Sua pretensão de infinito e de existente por Si mesmo. Deus que cria o homem que morre, mas se porta imortal. Mas se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, eu penso, ou Deus não é como diz ou a morte não é como prega. Ou Deus está morto por antecipação ou eu não se pareço em nada com ele. Ora, caso Ele estivesse aqui, eu o desafiaria primeiramente a chupar esta gota de suor de volta para dentro de minha testa – proporcionando a mim uma imagem real a sua semelhança, uma perfeição em grau infinito. Mas não. Como posso crer que há um Deus tão dilaceradamente incapaz de atitudes elementares? O pequeno glóbulo continua a deslizar rosto abaixo. Cubro com o pano o cárcere final da avezinha. Em um movimento preciso e seco, minha mão aberta esmaga gaiola, pássaro, pano, tudo contra o tampo da mesa. Um novo silencio se instaura. Não basta fazer o pássaro sumir: é preciso trazê-lo de volta. Então eu o trago. Então eu o revelo. Surgido detrás de meu corpo e pousado na beirada da falange de minha outra mão, o segundo pássaro bate descompassadamente as asas. Hoje foi seu dia de sorte, eu lhe digo. Amanhã, talvez, seja sua pequena ossada a ser extinta sob o buraco da mesa, debaixo do pano, varrido pra baixo do tapete, esquecido. O meu peito é inundado pelos aplausos simulados, postiços feito cílios em terno rosto, através dos quais a platéia assume diante de mim que sabe a verdade, mas está lá porque gosta de ser enganada. Os pássaros sonham que andam. Eu sonho que posso. Deus, agora, só sonha que morre. 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Amor é colisão

trecho do livro 'A insustentável leveza do ser'.
Foi nesta sentença que meu pensamento se fixou: às vezes é apenas um impulso mesmo. A força dirigida nos atos imperiosos do amor leva a uma conclusão cientifica amplamente conhecida: para que algo entre em movimento é preciso que haja interação de dois corpos.

A física define este impulso como a grandeza que mede o quanto varia a quantidade de movimento de um certo objeto, no sentido que uma pequena força aplicada durante um longo período pode causar o mesmo movimento que uma grande força aplicada de uma só vez. Ora, não é sob estas condições que ternos casamentos e paixões desavisadas nos movem?

Mas claro que esta força de ir ao encontro é, deveras, desajeitada e violenta, como um vento que colide a árvore contra a casa. Muitas vezes irresistível e que leva as pessoas à prática de ações irrefletidas, o impulso de desejos ruidosos possui, ainda assim, precisa serventia cuja pretensão é uma só: tanger o outro.

À distância ou à deriva tem importância neste estado de repouso. Pois que a tendência é a de analisar a quantidade de movimento antes e após a colisão. Nunca durante, porque só se aplica força ao que está parado. Esta é nossa noção mais intuitiva de impulso e, quem sabe, a mais recorrente também. Por esta razão, talvez, uma quantidade infinita de laços nunca se rompam definitivamente. E por determinação completa e categórica de algum âmago supremo de nosso cérebro ou coração, continuamos a impelir força sobre os episódios estagnados da vida. Chame de vontade, de desejo, de ego, de orgulho ferido. Não importa. Chame do que quiser este ímpeto de coragem que movimenta os sucateados amantes.

Mesmo no resguardo sutil que eleva o discurso ao um nível quase cínico, são nas redomas de proteção das distâncias criadas que abandonamos tantas vezes o viver, o pensar e o sentir. O amor é um ato de colisão. Tem que ser. A pergunta é: quantas vezes mais o subterfúgio geográfico salvará as aparências?
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Junho / 2014


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A história de um amor

André e Dorine: conheceram-se em 1947 e nunca mais se separaram. O casal cometeu suicídio em 2007 e seus corpos foram encontrados lado a lado no apartamento em que moravam. Dorine sofria há anos de uma doença degenerativa. André não quis viver sequer um dia em sua ausência. 

Parque Municipal do Varvito - Inverno de 2014.
Joaquina,

Voltei hoje ao parque que viemos juntos pela ultima vez há dois verões. Minhas pálpebras tremulam. Este sol bem pouco cálido parece que vem ocupar, sem matéria, sua presença. Cheguei a conclusão de que a morte não separa ninguém. A vida separa. Porque, cada vez mais, sei que perco a capacidade de perceber com exatidão se fiz sexo ou se apenas tomei um café. Acho que nossos sentidos ficam por demais aturdidos diante dos inevitáveis atos do destino. Sinto-me tão incapaz, meu amor, de lidar com esta injúria que vida conjurou a mim!

A mesma doença que lhe tirou a vida, tomou a minha. Estes anos passaram vagarosamente sem você. Acontece que, nestas falhas de coerência, as coisas passaram do suportável para o passado muito rápido. E eu me vi como se estivesse a testemunhar o mesmo bando de traças que ruiu um armário devorar, agora, uma cômoda, dia após dia.

Decidi, então, que meu corpo descansará ao redor das flores que, na impossibilidade transitória de vê-la, possuem o tom que mais se assemelha a cor de sua pele pálida -  pelo menos em minha memória. Por isso, jogarei meu carro do precipício na última saída da rodovia Helio Dutra, naquela ruela após a estrada serpenteada, em que colhemos magnólias em 97. É a despedida mais fúnebre e também a mais bela que terei tempo de preparar, em um lugar só nosso. Espero que perdoe minha tamanha pressa. Tenho urgência de te reencontrar.

Todo ato de condenação se baseia em algum raciocínio, portanto, seria inevitável que meu corpo não se tornasse vítima desta razão. Torço, apenas, para que minha alma se descosture logo.

Com todo o amor,
M.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

As confissões de James

Já não estou mais cheio de mim, Ana. Mas repleto de nós – mesmo que nós já não sejamos mais eu e você. Acho que não terei tempo em vida de cuidar de suas flores. E quanto a Sabrina, não se preocupe, porque ela não vai me proteger. Mas este seu apartamento foi e sempre será uma cabine no meio do mundo em que eu, você e ela fizemos arte, amor e guerra. Porque Sabrina fez desse apartamento um albergue europeu, e nesse seu pedaço de mundo ela ora me aspira, ora me consola. Eu vim aqui para te perder. E agora a morte é isso?

JAMES
Limite: foi nisso que eu fiquei pensando. Eis uma linha fina que marca o fim de uma extensão. O limite é sempre comum aos dois, sobre o qual pessoas ora se deitam, ora se estranham. E nesse mesmo lugar, tem o costume de se sentirem constantemente invadidas: o limite é isso. O lugar em que as pessoas exigem, mesmo que elas não possam se equilibrar sobre ele, o lugar de confessar.

Eu me sentia como uma espécie de termo incapaz de produzir ação e de fazer reverberar efeitos. Nunca fui influência, ou talvez nunca tivesse me imaginado assim. Ao pensar no limite e nas fronteiras que existem, eu me via como preso a uma eterna elasticidade. Acontece que não é isso que a vida me causou. Foram as relações que tive. Eu fui um homem para além da minha carga, protocolado em ataques e acusações - e, por isso, essas deformações causadas por Ana e Sabrina se tornaram permanentes e perigosas.

É para isso que as pessoas escrevem? Deve ser por isso que Ana se apaixona. Hoje, como há muito tempo não, eu sinto não completar a mim. Mutilado ou apenas imperfeito, sei que, hoje, é completamente possível romper um relacionamento comigo. A minha garganta inflama, flameja – e mesmo que não seja para tanto, às vezes eu me sinto morrer por muito pouco (e quem morre por pouco, por pouco não vive).

É tão horrível a sensação irremediável de magoar as pessoas que gostamos quanto é horrível controlar as pessoas que não entendemos. Houve dias em que vi Ana como uma menina cujo meu cuidado poderia se deitar facilmente sobre ela, da mesma maneira como eu me via nela, eu já tinha me apaixonado por ela – em outra vida, em algum outro lugar. Em certos momentos sentia uma ligação com ela, uma verdade integral entre nós. Acontece que não há desistências para tanto, nem insistências para tão pouco. Sabrina não se apaixonou por Ana como eu, mas por tudo que ela não mostrou, construiu uma paixão alegórica que a servia. Quantas transas nos envolveram esses últimos dez anos? Ah, eu enlouqueceria.

Eu me lembro perfeitamente de ela, Ana, ter dito que me via com olhos de gato – porque foi assim que ela me fez personagem. Em um momento eu era um homem de barbas e dimensões. No outro, eu estava espremido em uma folha de papel. Porque escrever sobre alguém que se gosta é como uma tentativa de fazer com que a pessoa esteja em uma eterna disponibilidade irrisória, na qual ela é lida e lembrada, mesmo que já não tenha matéria nenhuma, nenhum peso. Acho que as pessoas se apaixonam quando menos esperam. E talvez eu também estivesse a não esperar, como quem assume o risco de entrar no mar quando chove.

Todo sexo será impossível se não houver nudez, cada vez mais eu me atentava a isso – pois que as pessoas tiram as roupas para dar lugar aos pequenos espaços em que o espírito respira. Foi por isso que eu quis morrer nu. Para que o meu espírito pudesse dar um ultimo suspiro – não para que eu pudesse voltar a vida – mas para que eu pudesse sentir que não fui apenas um homem doente e apaixonado. Porque a gente simplesmente sabe quando não mata mais a fome de alguém. A vida são memórias – e as memórias que deixei para elas foram como as minhas opiniões sobre tudo que conheci em vida. Nunca visitei Istambul. Mas fui a Nova Iorque nos olhos de Ana, e aos albergues europeus nas mãos de Sabrina. Os homens sempre estarão doentes e as mulheres sempre estarão incríveis. Hoje existe um desenho imaginário que une as pessoas – curiosamente, é o mesmo que as separa. O limite.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Ao labirinto fugaz da memória

o amor é aquilo que nos oferece um novelo de lã no labirinto [*]

Noventa dias passam em um único piscar de olhos. Noventa dias: período de experiência definitiva do fim do amor. Momento em que volta a outorgar a ideia irrisória do descarte. Será que acontece igual para todo mundo? Esta ideia de encontrar-se livre de algo cai com tanta facilidade que é possível usá-la sem proeminência de julgamentos... sem culpa mesmo. Embora haja sempre ressalvas sobre estas omissões negligentes que atribuímos à falta do outro, a memória é um labirinto que instiga o enamorado: não é à toa que, neste dédalo em que se vigila as lembranças, residam tantas confusões mentais.

Acredito que, raramente, o amor aconteça em algum pano de fundo político ou palco aristocrático através dos quais nós, por impulso natural, acabamos por atribuir o fracasso da guerra. Há pouca lógica sobre a qual se apoiar neste cenário. 

Este labirinto que percorremos ora certeiros, ora marginalizados, não traz nada além da desilusão do fracasso. É frustrante estar apaixonado por alguém que decide esquecê-lo; e tanto a memória quanto o passado têm a função de nos humanizar – acontece que, nos corredores de nossa própria cabeça, onde tudo é, antes de qualquer coisa e principalmente, uma história de amor, parece ser inofensivo tentar apagar o que ficou gravado no coração. 

Pois que falar de esquecimento nada mais é que falar sobre a necessidade substancial de ser lembrado; e estamos todos do avesso quando se trata das mazelas do amor. Por isso talvez, seja tão difícil indicar com precisão a causa de um mal nesta sucessão de acontecimentos desorientados, em que os amantes enfrentam o eterno problema de simplesmente se darem bem. Amores são exigentes. 

Fundadas ou supostas, é certo que estas exigências fazem com que a memória acesse diversos corredores deste conjunto de percursos cuja intenção é apenas a de desorientar quem os percorre. Imagine uma lembrança sendo puxada de você como uma corda que se desenrola janela abaixo? E então, a sensação tão próxima, tão real, de que, a qualquer momento, pode-se cruzar com o monstro outro vez? Toda desconfiança nos arrasta a um delírio.

Então, é no centro destas paredes erguidas com tanto esmero que o minotauro dos romances permanece intacto; e toda manipulação tenta dissolver-se. Lendário, histórico, verossímil: não importa. A criatura mítica decorrente de um amor não-natural só agrava o risco de sermos devorados e, aprisionada por suas características metade humanas, metade animais, permanece como uma placa luminosa que contesta justamente nosso juízo mais atroz e definitivo: sofrer por amor ainda é preciso? 


[*] Antigo conto grego: "O mito do Minotauro".