sábado, 5 de julho de 2008

ambulante | 4

vou contar-lhes, sem qualquer redenção de detalhes, sua trajetória. ela tinha os olhos levemente puxados: eu sempre lhe dizia isso. e ela dizia: olha no que você repara! verdade, ela tinha mesmo os olhos puxados. o cabelo escuro e bem definido, com curvas e ondas. ela tinha os lábios desenhados como feixes de luz, densos e poéticos. lábios de mistério. dentes perfeitos. e que defeitos, que nada. ela apenas falava demais. fantasiava demais. contava casos de seus casos passados e isso me deixava doente: tudo bem, estranho seria conviver com alguém que não possui assuntos pendentes. assim, lembro-me de lhe ter oferecido um gole de cerveja, há dias, como um convite. antes mesmo do primeiro beijo, a gentileza de oferecer bebidas. e porque, explica-me, tanta educação? os relacionamentos eram só uma desculpa para não se viver sozinho. que medo, tenho medo de morrer sozinha. de apodrecer sem ninguém. sequer consigo esperar quieta para ser atendida no destista. troco de revista com pressa. troco de revista várias vezes seguidas, entre chicletes e goles secos d'agua. não sei viver por mim, preciso sempre de companhia. de gente. sou gente que adora gente. movimento, agito, reboliço. ah, o trinco da porta ficou aberto depois que ela saiu. trancou por fora, e deixou a chave por trás do quadro azul, no corredor. ela me disse que achava estupidez deixar chaves escondidas na decoração do hall, mas o que pode fazer quanto a isso? nada, né: haveria de se render. então o fez. ajeitou a chave por detrás da obra e saiu. saí no corredor: seu cheiro ainda estava ali, planando entre a fumaça que subia da pastelaria. que porra, seria aquela hora de fritar pastéis? dessa forma, tenho preferência por elatados. condimentos. aromas artificias. não o cheiro natural de seu corpo, mas seu perfume. sua fantasia de ser reconhecida através de uma característica industrial. cosmética. estética. infame. outra vez, era só uma invenção. nenhum relato completo de sua existência, tampouco de sua permanência entre minhas pernas ou paredes. eu vivo em um cubículo. não posso mais continuar sem essa mentira.

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