terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hoje meu amor não ama

'bloody mary' de maria rubinke

Acordei com o coração na mão. Partido, retalhado na metade e escondido por líquido ralo e opaco, pulsava pouco e sem ordem. Em uma das partes, batia ainda um pouco de vida, um tipo de soluço ou murmúrio, baixo, com pequenas quantidades de ar na superfície, borbulhas inflamadas e vermelhas. Logo ao lado, a outra meia parcela do coração tinha cor mais escura, de ébano, ramificações concretas e granuladas, imperfeitas como a face da velhice;  tomada pela sensação de estar acabando, talvez senil e fraca, presa ao formato côncavo da cama, sobre a qual resisto e conservo esta aptidão de sentir vasta mágoa, senti as veias vazias, epidêmicas, como cordas desatadas pela base de seus nós. Minhas mãos abrigam sem destreza este músculo atrofiado, mas ainda preso ao meu corpo; sobre meu tronco, há o corte com início na entrada da garganta que desce até o limite do sexo; meus órgãos, imergidos no interior rubro do corpo, permanecem quietos, talvez paralisados pela falta de pulso do coração. Tudo dorme; vagarosamente, ergue-se sobre o perímetro do colchão a lombar, as costas, os ombros; sento-me da cama, com o que resta da vida entre meus dedos, olho meu corpo e o vejo no reflexo do espelho da cabeça até a cintura. Estou tomada por uma excitação sensorial, e triste, transmitida à medula por via nervosa ou reação motriz referente ao meu espanto de estar diante de algo tão singular, tão evidente. Hoje meu amor não ama.

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