"uma flor que pudesse ser eterna." |
Mais um domingo alarmado que perfurou nossa desavisada intimidade. Ao alcance do que pude avistar, alguns vizinhos celebravam uma possível festa de aniversário no anexo do prédio em frente. No sexto andar, duas mulheres mergulhadas nas luzes piscantes do televisor, assistiam a algum usual programa dominical e fumavam cigarros, concentradas, mas com certo aspecto entediado diante dos minutos gratuitos e infinitos característicos deste dia quando se aproxima do final. Mais abaixo, no primeiro andar, um grupo imenso de pessoas, sentado ao redor da mesa circular, formava a típica congregação familiar, com avós, tios e crianças pequenas. Nós, da sacada recém-telada, observávamos, com as mãos pousadas uma na outra, sobre o centro de nossa pequena família nuclear, a lua em fase crescente e o céu manchado de azul marinho abraçar todas aquelas diversas situações de afeto e comparecimento. Olhando pela trama da rede, meio dispersa e flutuante, imagino que nunca houve antes uma circunstância que tivesse me invadido com tanta prontidão de felicidade. Cobicei que este dia pudesse ser eterno. Cuidaria da memória deste dia como quem se dedica ao cuidado de uma flor que se pretende durar para sempre. A memória tem mesmo essas aspirações irrisórias por eternidade.
Os cientistas não teriam conseguido imaginar a ideia do dia eterno, escrito trabalho literário ou perseguido veemente este entendimento mental de que este poderia ser um conceito verdadeiro e autêntico diante dos olhos: o dia aleatório de nossa própria escolha e, porventura, sem alicerces conscientes, que decidimos fazer durar sem fim na lembrança.
Conforme ela falava, sentia suas palavras e elas tinham gosto de café. Nossa convivência, tão protegida pela aparência da banalidade naquele instante, era para mim como um raio de sol que escapa da nuvem em dia enevoado. Meu ritual de iniciação. Sua existência me validava de forma positiva, me atestava em presença, em testemunho diante da vida, sem desafetos. Acredito que, num tempo muito breve, superei quase que completamente o meu medo - que era o de ela não existir. Senti minha sensibilidade perder as rédeas do próprio governo. Uma anarquia sentimental esclarecedora e precisa. "Ganhei na loteria sozinha", pensei.
Foi durante este estreito trilho por onde a babel de sentimentos se espremia para caber e passar, que pude ainda me dar conta de que, mesmo no caos, existe certo algorítimo organizado. Pela primeira vez, reconheço minha intenção e sinto que sou capaz de dar conta do desejo. Nem tudo são dores - mesmo em paráfrase dos ditados mais populares. Como era ousado diante do meu acanhamento permanecer ao seu lado. Senti a cidade como uma palma. Passei a querer dispersar a morte de toda forma possível. A vida enorme se aproximava, tirando da sugestão ambiciosa da morte a sensação que rondava este domingo sem precedente que estava absolutamente fora do tempo e do devir. Os amantes precisariam ser cuidadosos nestes intermináveis primeiros dias e talvez nós fossemos mesmo; um cuidado misterioso e fascinante e que movimentava a vida adormecida como se movimentam as partículas de água diante do estímulo da temperatura.
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