quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você / f. n. |
O escândalo de uma pedra no meio do caminho nunca me pareceu tão concreto.
Às vezes, dou sorte de tropeçar
em uma reflexão meio a pretexto de nada, apenas, como quem pega uma mão, de
apertá-la muito. Olho a pedra parada no chão árido do estacionamento. Faz dias
que a observo. Ora como chanfro diagonal irregular, ora como fagulha de
azulejo, meio cinza ou meio avermelhada, e ela me olha, me sonda, toma conta de
mim numa esguelha precisa. Eu, obliquamente, retribuo a atenção.
Ela me vê?
Alguma poesia? ― pergunta-me a
pedra.
Para a pedra, a pedra sou
eu? A pedra parece um diamante bruto, não lapidado, da concretude de mim
mesma. Ela pede uma biografia? Uma ciência? Uma arte?
A superfície só existe à
primeira vista, devo lembrar-me. Olho a pedra e ela se torna a
pedra vista por mim. Já faz parte de minha vida.
Existe a censura de um pai no olho da pedra. Isto me condena à literatura?
Acho que a pedra também é a
mulher que foi embora. Aquela que quebrou os discos, que proferiu meia dúzia de
verdades sobre minha conduta. Isto me salva? Gostaria de me desculpar pela ausência da minha
mente, mas acredito que cada um se defende das ausências como pode.
Uma pena.
A verdade é que eu estava
progredindo para me sentir estruturada, orgulhosamente orgânica de novo, mas
agora, diante da pedra, tudo se transformou. O sol cálido incide sobre minhas
têmporas. Uma primavera febril a qual a pedra não se assusta.
Já
passa das onze.
Deveria
estar trabalhando, eu penso, e estou aqui parada, mas suspensa, sem respostas capazes
de amenizar aflições. A pressão típica exercida pelo tempo sobre as pessoas
quando os romances são rompidos.
Acredito
que tenha me tornado apenas figurado pejorativo e considerado pouco
inteligente. A funcionária extravagante que faz pausas e a poeta exemplar numa
mesma mulher.
Adianta?
Então
a pedra é tudo?
Sim,
às vezes penso que a pedra é tudo; tudo que restou; e que pode me livrar do
naufrágio em vida, ou do único elemento que resta das separações: a liberdade.
Bastaria
olhá-la para isso? Gostaria de alcançá-la.
A
pedra foi atirada de volta em minha direção; o mundo a devolveu para mim como
se soubesse que de um acontecimento trivial, cotidiano, pudesse ser tirada
alguma razão vital ‒ ou poética. Tornou-se
uma pedra em meu sapato. Uma pedra preciosa em meu sapato.
A PEDRA.
Tornou-se a segurança
da minha existência. A garantia de afastamento da morte em razão da estupidez
ímpar de um acidente. É, pode ser. Quem sabe ser pedra é estar a salvo; quem sabe a salvo,
ao menos, por ser a lasca seca que ninguém deseja tomar para si. Muita coisa
errada acontece em casamentos. Será que algum dia serei tão concreta como a
pedra, ou tão real? Há uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho há uma
pedra. Mas também, que pedra seria eu se não houvesse um meio do caminho para
estar?
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Dezembro / 2014
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