terça-feira, 26 de agosto de 2014

Deus, nome impróprio

A ideia de Deus é uma ideia atroz.

Este é lugar em que se testemunhará um ato trágico: um pouco da morte de Deus. Não sou assassino a discorrer devaneio, tampouco criminoso em potencial. Não. O veludo suspenso a minha frente se abre e me revela parado, inofensivo. Aqui jaz apenas um homem ordinário diante de uma platéia comum. Uma gota de suor escorre, estou vivo. Uma senhora ergue o pescoço, é curiosa. O bom truque precisa de muitas provações. O velho, o paralítico, a criança, a puta, os guardas: é preciso fazer com que cada uma destas pessoas duvide de mim. Eu avanço três passos ensaiados em direção a mesa no centro do palco. Ela é simples. Sobre ela, a gaiola abriga um pequeno pássaro. Sobre os rostos, há silêncio inédito. Sinto-me ilustrado, cultuado. Este é um ramo em que as pessoas apreciam a ilusão – embora não seja o único. Eu retiro um pedaço de tecido cintilante do bolso, um objeto corriqueiro como tudo a minha volta e nesta vida. O único som que reverbera é o batimento das minúsculas asas, tão aceleradas quanto o piscar da luz de um estrobo. Quanto mais o pássaro se debate na gaiola, mais minhas mãos se aproximam da imundice que cairá sobre elas. Os mágicos apenas fingem fazer aquilo que os magos praticam por excelência. Os mágicos são homens como eu, invejosos, mortais, que sujam as mãos na prática de toda sorte de prazer. Então, a ilusão da magia que pratico é a de ludibriar a platéia. Do meu o poder de convencê-los de que estão olhando atentamente, prontamente, de que sua ignorância humana não os condenará – de que o deleite sujo pode ser irreal por um dia, por um ato, por um momento, enquanto os aproximo da obediência cega – tal qual a divindade faz ao lhes privar o juízo –, e os afasto com seguidas atitudes corrompidas contrárias as da verdadeira fé, da fé genuína, que abre os olhos diante do milagre. Estou disposto a contradizê-los incessantemente porque a dúvida é o motivo pelo qual retornam. A ausência de magia é evidente. Só os magos são os verdadeiros guardiões do desenvolvimento integral das faculdades humanas, de busca pela essência da espiritualidade e da natureza. Eu não. É neste instante que Deus me ocorre. Hoje, Deus é o único que não crê. Deus e seu nome impróprio. Deus de inicial maiúscula. Deus de Sua pretensão de infinito e de existente por Si mesmo. Deus que cria o homem que morre, mas se porta imortal. Mas se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, eu penso, ou Deus não é como diz ou a morte não é como prega. Ou Deus está morto por antecipação ou eu não se pareço em nada com ele. Ora, caso Ele estivesse aqui, eu o desafiaria primeiramente a chupar esta gota de suor de volta para dentro de minha testa – proporcionando a mim uma imagem real a sua semelhança, uma perfeição em grau infinito. Mas não. Como posso crer que há um Deus tão dilaceradamente incapaz de atitudes elementares? O pequeno glóbulo continua a deslizar rosto abaixo. Cubro com o pano o cárcere final da avezinha. Em um movimento preciso e seco, minha mão aberta esmaga gaiola, pássaro, pano, tudo contra o tampo da mesa. Um novo silencio se instaura. Não basta fazer o pássaro sumir: é preciso trazê-lo de volta. Então eu o trago. Então eu o revelo. Surgido detrás de meu corpo e pousado na beirada da falange de minha outra mão, o segundo pássaro bate descompassadamente as asas. Hoje foi seu dia de sorte, eu lhe digo. Amanhã, talvez, seja sua pequena ossada a ser extinta sob o buraco da mesa, debaixo do pano, varrido pra baixo do tapete, esquecido. O meu peito é inundado pelos aplausos simulados, postiços feito cílios em terno rosto, através dos quais a platéia assume diante de mim que sabe a verdade, mas está lá porque gosta de ser enganada. Os pássaros sonham que andam. Eu sonho que posso. Deus, agora, só sonha que morre. 

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