"my yesterday was blue, dear".
Observo o café passar e percebo que minha memória não é capaz de trazer à lembrança a quantidade de colheres de pó que coloquei no dia anterior. Basta que decida por três e acho que deveria ter colocado duas; se decido por duas já percebo uma sensação que me afronta, o resultado inevitável de uma bebida fraca que será meu destino naquela manhã que me deprecia por antecipação, sem energia moral, sem firmeza. Não confio em que aceita café ralo. Bato os pés e sinto uma tosse para dentro. Mal passa das sete; e diante desta evasiva alegação, a pretexto não se sabe muito bem de quê, provoco o surgimento da ideia construída a partir de nada, por geração espontânea - como religião ao afirmar a existência de um deus, e dizer que ele é homem, imagine - e que faz com que, por deleite e comoção, o café diferente se torne algo como o café único; é uma iluminação. eu paro. ele é exclusivo, penso, é privilegiado, o café possível, e que constrói uma memória também ímpar mesmo que sem muito intuito de se firmar. O primeiro gole me faz lembrar com mais clareza, os seguintes, dão certa visão distinta e penetrante das coisas que não apresentam precedente, tampouco, se repetirão e, assim, todos os dias, nessa ausência aparente de ordem, sei dos instantes em que ele esteve perfeito, dos dias em que parecia anêmico (e detesto), daqueles em que não passava de uma espécie de intragável tinta preta; percebo, hesitantemente, que essa mudança periódica dentro da rotina pragmática deixa a realidade menos espessa, faz dela digerível, algo com o que posso conviver e que me agrada, e atesta do jeito mais modesto que talvez possa existir que nenhum dia, nunca, em nenhuma circunstância pode ser igual ao anterior. and that's ok.
eu amei (Ramon)
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