sexta-feira, 9 de maio de 2014

As estações | Ao outono do meu pensamento

"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com)

SEGUNDA PARTE
na natureza, toda queda vem a propósito

Os dias seguem áridos e mornos. Eu balanço entre a sensação de exibir a cauda multicolorida de um pavão e contorcer o corpo como um tatu-bola. Creio que nenhum pensamento será capaz de concluir-se. Sinto-me abrindo milhares de portas e pequenas passagens a gerar corredores de ar. Estes sopros subterrâneos esforçam-se na tentativa de me aerodinamizar enquanto meu corpo impele ajuda, desdenha resgate. Todo pensamento é um imã aqui.

O outono sacode grandes lençóis de ar ao redor do universo, gerando este vento fresco e cálido. Esta estação volta a exercer sobre mim a pressão típica dos romances quando são rompidos. Uma natureza inteira tomada pela leveza insustentável da queda das folhas. Sinto uma necessidade irreprimível de dormir.

As garrafas de vinho estão largadas aos quatro cantos da sala de estar - hoje, em particular, esta casa me parece um pouco menos estrangeira do que fora ontem. Talvez em razão de eu ter depositado meus pertences em lugares estratégicos que, ao invés de refletirem minha solidão, a pudessem absorver. Aos poucos, isto deixa de ser um ato de ruir.

Há dias não reconheço o contorno de meu rosto. Uma face de cera bruta, malacabada, que emoldura os lábios tintos pelo roxo dos vinhos. Sinto até o peso dos meus cílios, batendo com violência como fazem as árvores de lá de fora, e nos intervalos desta insonolência, a vontade delirante de dormir. Meu humor é ríspido.

A gravidade é um fenômeno tão natural! Mas talvez só possa estar em queda aquilo que muito se precipitou. Ora, é justamente neste atirar-me violentamente sobre e contra a ossada restante do amor que me antecipo frente aos ataques que, outrora me feriram as pernas, mas que agora me desarmam de forças. Sinto-me desmontar. Minha maior fortaleza é a elegância da minha recusa.

Pela primeira vez, acredito que este cerco que fechei ao redor de seu nome será de alguma utilidade. Este sítio no qual eu lhe obrigo a fazer morada, repele minha presença. Ainda bem. Cada célula do meu corpo milita em razão desta causa agora. Não sei se foi Deus ou se fui eu. Apenas sei que funciona.

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