domingo, 25 de maio de 2014

A bordadeira | 3

'é com veemência que o amor se nutre dessas comparações' 

Já passava das onze e meia. Fazia pouco mais de duas horas desde que chegara a seu apartamento. As paredes haviam estranhado claramente que eu, desta vez, não estava acompanhada de Joaquina. Tive que trabalhar até tarde e ela teve de fazer uma viagem de emergência. Tudo parecia inanimado sem ela. Ao mesmo tempo em que me preenchia a ideia de nossa intimidade que me permitia estar ali, me tencionava os músculos saber que teria que sobreviver àquela noite sozinha. Diante de sua ausência, o ruído das aeronaves aumentava exponencialmente a cada vôo como se buscasse despertar cada um dos objetos pousados sobre as estantes, no quarto e na sala de estar. O barulho alertava aqueles filhos órfãos. Era como se o tempo tivesse parado ali. No quarto de costura, o manequim assemelhava-se a uma estátua marmórea e imponente. Nunca havia reparado tanto nele. Aquela silhueta era a representação de seu corpo humano ausente. Senti como se não houvesse desvendado nem mesmo seu primeiro nível de pele. Não perfurei nem a primeira camada dela por completo. Eu me sentia uma faca de fino fio, cortando o apartamento com a minha presença como se corta um pedaço de derme rente aos pelos. Uma precisão tão respeitosa que, na minha cabeça, beirava o desrespeito. Eu enlouqueceria ali? Os objetos emitiam informações radioativas em minha direção. Eu era um órgão estrangeiro naquele organismo perfeito. Eu, um coração sozinho que imploraria pela não-rejeição. Imaginei que eles pudessem me arrancar dali, como fazem centenas de pequenos homens que imobilizam um gigante austero no meio da mata e o movem para outro lugar qualquer. Tomei um banho rápido e, em seguida, me apressei nas tragadas do ultimo cigarro que me restava. Deite-me. O farol dos automóveis incidia um feixe de luz dura sobre as bordas costurados do manequim no quarto. A sombra se movia pelo cômodo inteiro. Senti como se sua alma dançasse e imprimisse sua forma nas portas de madeira do armário, no chão, na superfície de seu criado-mudo. Seu cheiro inundou tudo. Era seguro estar ali sem ela?

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