"alice in waterland" (by elena kalis | elenakalisphoto.com) |
PRIMEIRA PARTE
o calor é a forma de vivacidade da expressão
Os dias seguem quentes e úmidos. Tudo brilha na refração da luz que penetra nas gotículas de suor sobre a pele. Um pouco mais para baixo, cada fibra de cada músculo também transpira. Tem sido dias de pouco sexo. O ultimo ardido contato que meu corpo fez com qualquer outro foi numa noite de baixa temperatura, há uns seis meses atrás. Esta estação parece um holocausto a me condenar.
Que quentura improvável me provém
esta primavera fora de época! Tenho receio até de minha própria indignação
em relação a isso, mas sei que, de fato, detesto este clima. Meu corpo
permanece deitado no quarto, no piso frio, como um bicho impotente perante o
cansaço.
É a vigésima oitava lata de
cerveja, apenas nesta semana. Contei
cada uma delas nos intervalos de minha inerte falta do que fazer sob a qual
cada vértebra do meu corpo se curva e se estica de novo sobre as lajotas de
granito de chão.
Há tempos atrás teria visto isso
com tamanha poesia que meu estômago, caso este pensamento me ocorresse hoje,
vomitaria imediatamente. Não que o tempo trate de rudimentar, mas mostra uma
sabedoria que há vertentes poéticas da juventude que são belas aos olhos rasos, nunca aos olhos nus de quem verdadeiramente se despe.
Uma brisa sem energia cruza o
corredor entre a janela e a porta. Ela dura ou parece durar muito mais do que
seria para se desejar. Seu zumbido fino é como um adágio aos meus ouvidos. Em
uma ópera mental, delirante, meu corpo continua a por-se do avesso. Despejarei
toda minha liquidez até a ultima gota? Minhas costas tomam a forma dos
rejuntes. Eu, sendo fluído, tomo foma do recipiente em que estou: este quarto
não habitual e vazio.
A minha volta, vejo as obvias
semelhanças deste local com um quarto de hotel. Lençóis brancos, moveis
brancos, madeira clara. Acho que se um feixe de luz batesse aqui, duro e
incisivo, suas incontáveis partículas se espalhariam deixando o rastro de uma
parte do céu, de um paraíso isolado qualquer. Um mergulho em uma piscina de
leite. Tudo branco e etéreo.
Esta pureza exerce sobre mim uma
força patriarcal. A mão de um pai que preza pela inocência dos filhos. Se antes
houvessem me avisado a respeito deste estado disforme de deleite, talvez tivesse
prolongado a embriaguez de minha decisão em mudar-me para cá.
As vestimentas pousadas sobre o
opaco branco das prateleiras, os papeis das contas pagas, os cadernos de linhas
sem frase alguma: tudo aguarda uma prosperidade, um espaço maior nas
entrelinhas deste texto ordinário que passa repetidamente em minha cabeça.
Estou em branco ou a preencher-me,
não sei. Sinto-me um boletim sem voto qualquer, um bilhete não sorteado, uma
rifa sem prêmio. Acompanha-me, apenas, um brando soluçar de cadência própria.
Meu coração ensaia os primeiros passos de dança a medida que o corpo sussurra o
ar. O tom é grave.
Sinto falta.
Sinto os efeitos que minha
própria digladiação me causou até aqui. Acho que não me movimentaria para esta
cidade caso não fosse pela busca de cura de minha solidão. Nascida dos espaços
vazios entre nós, não creio no destino como explicação a esta
mudança. Não há objetivos essenciais àquele que está em estado de fuga. Todo
fugitivo não passa de um desorientado.
Sinto uma fome que me volta
sempre – ora acompanhada de um enjôo, ora a escavar um buraco bem ao centro de
meu estômago. Este calor também me entristece. Gostaria de ter novamente sua
voz ilustrando estes dias não favoráveis.
Cai sobre meus olhos um
abatimento profundo. Ao final dos corredores da alma, eu permaneço deitada e em
silêncio neste interior maciço. O cinzeiro tem dentro dele tanto quanto pode
suportar. É um pouco como eu. Constantemente os fumantes fantasiam sobre nunca
estarem sós.
Acho meu corpo tem criado raízes
neste lugar. Pela extremidade de cada dedo, mãos e pés, fixam-se meus órgãos na
planta deste solo arredio. Meu corpo absorve o ácido liquido sob a voz de minha
sede. Toda raiz é uma solução aritmética inexata. Não há valor real ou complexo agora que me satisfaça. Se não há doçura
nos vínculos, as coisas acabam.
Sou apartada. Um filho herege.
Extravio-me. Minha respiração segue o ritmo do corredor exausto, um ultimo
colocado. Todos seguem montados em seus cavalos de fino garbo, enquanto meus pés
rastejam pelo itinerário de terra batida no qual se transformou o caminho
tratado, outrora, com tanto esmero.
Tudo tornou-se um grande objeto
afastado, cujos meus olhos já não alcançam mais. Eu afundo. Eu sou o observador dentro do
olho da câmera que tenta buscar o sujeito do retrato para perto de si. Ao
contrário, este movimento se desenrola como a ponta de um carretel infinito.
Uma ação frívola dentro de um espaço de distância que apenas separa encontros.
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