estou a iniciar um texto. eu me concentro: e eu sei, eu vou perder um tempo. é como se fosse ter um filho ou fosse decolar, pular de um prédio. passo a ser uma extensão de mim. tropeço, como um bêbado. trago a embriaguez comigo. sou apenas um pacote de receios. sou eu, resguardo.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
O Acordeonista
Um canto que mais parecia um pranto, um suplicio que impetraria em mim e depois em nós a harmonia – era uma instancia na qual eu não confiava nem para mentir. Porque o balanço implicava um limite também. Os dedos traziam um cruzar de silêncio e de tormento e as notas faziam pequenas perfurações na melodia como tiros de um insuficiente no escuro. Como pequenas interrupções, pequenas granulações no discurso sem palavras que propunha, as notas era carregadas de auto-promoção. Não via e não era visto – minha simplicidade era poder passar desapercebido por ela, um andarilho talvez. O som passava por mim em um tom caramelado e viscoso. Não me possuía, não me tomava ou me ou fazia dono, eu era o mesmo de sempre, mas não era eu mesmo quando destrinchava aquelas notas no ar para ela. E que ar mais denso, penso eu, para querer ser escutado. Minha proposta seria trazer essa pequena aspiração até o âmbito do pensamento. Até o máximo do pensamento. Eu fitava seus olhos com os olhos que ela não tinha – e isso me passava a sensação de estar em vantagem. Era como se eu tivesse domínio sobre seu passo. Eu olhava seu vestido, seus quadris, os trilhos de seu cabelo, as fivelas. Eu ouvia suas sandálias estalarem no chão, festejando. Parecia que eu puxava seus braços de um lado para o outro, eu deslizava seus pés, arranhava seus pés piso. Ela, minha marionete. Marionete de mim. Eu colocava no piso seu peso de menina, de bailarina, de mulher como uma boneca, um enfeite ínfimo de porcelana em uma prateleira de pensamentos. Mas não se engane, há quando seu vestido espaçava ao redor do corpo também e no centro do salão: ela era um grande pavão no centro do salão. Com aqueles olhos azulados reconhecíveis, perfeitamente reconhecíveis. Olhos de águia velha, olhos foscos, turvos. Olhos molhados. Olhos de afogamento, de socorro. Olhos baldios como só ela tinha. Por tantas vezes inclinei as costas em sua direção, a cortejá-la. Torná-la nobre. E o que me parece é que este instrumento é um velho de público único. Ela faz na escuridão, mas são faria no absoluto silêncio. Eu sei, eu a conheço o suficiente para duvidar dela. Este velho acordeonista é o que existe antes de saber existir. Porque não existe felicidade sem um bom acordeonista. E tudo me parece correto agora, e dentro das controvérsias.
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sempre surpreendente.
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