terça-feira, 28 de abril de 2009

Devaneio Canalizado

A dor ocorreu e infartou a minha mão. O lápis bateu contra o chão gerando um estalo que durou alguns segundos. Um suspiro tomou conta de mim e eu levei as mãos até o rosto, inacreditavelmente envelhecido. Quantos anos se passaram desde a última vez que me olhei no espelho? Cem, duzentos talvez? A chuva batia no vidro da janela, torturando-o. quantas vezes desci a serra pelas curvas da estrada de Santos? Quantas vezes caminhei pelas belas praias?
Imagine quantos novos amores nasceram às margens cimentadas dos canais.

No fundo da minha mente, nosso amor insiste em ser lembrado como um destes, nascido às margens. Canais levaram, durante um centenário, água ao coração da cidade. Levaram, as margens do pensamento, ar ao coração mais fraco da humanidade: o meu, lógico. Mas por que tantas perguntas? Perguntas ainda não irão lhe mostrar que eu sou feito destas águas, deste frio, deste ar.

Imagine quantas moléculas solitárias de água atravessaram pelos braços destes verdadeiros rios urbanos. Imagine! Sete vezes diferentes. E, cada vez, um pecado diferente. Na chegada da cidade, o canal 1: a gula. Uma ânsia de conhecer tudo. É a nossa paixão em sua forma mais pura. No segundo, um segundo não poderia perder. Preguiça, só isso. Deu saudade de sentir e vontade de voltar a ser nós dois. Mas nada irá me desconcentrar, devo continuar a contar a minha história. Corri para o terceiro canal, coberto de cobiça. Voltei ao meu primeiro sentimento e fui direto para o quarto. Sentei a beira de um certo orgulho destorcido. Ao redor dele, hoje existe um certo desenvolvimento. Prédios lindos cheios de segredos. Banqueiros, donos de muitas das extinções impressas. Talvez eu fosse forte o bastante para suportar a falta de você.

De repente outro estalo. Voltei a estar sentado na escrivaninha com uma xícara de chá, já fria, encarando-me. Como me deixei ser conduzido? Como me deixei ser poluído? Estas perguntas me encostam contra o vidro da janela e me interrogam. Vi uma garrafa vazia flutuando na água lá fora, que não sei ao certo se está canalizada ou solta por aí, como minha liberdade, meu amor, minha saudade da vida. Quis por um instante deixar tudo para trás (mais para trás ainda, se é que isso seria possível). Sei lá, qualquer coisa. Sair deste corpo, encarnar em uma samambaia, numa panela, num pedaço de carne cozida.

Um gosto salgado atingiu meus lábios tentando me fazer renunciar. Mas eu me mantive firme, apesar dos pés trêmulos, das mãos bobas, do coração saltando pela boca. Tive um misto de diversas sensações me invadindo e tomando conta de cada pequena parte do meu corpo, como um banho frio ou um último gole que desce quente e queimando pela garganta seca.
Ainda lembro-me do quinto pecado. Por que poucos tem tanto e tantos outros tem tão pouco? Doce inveja, dei a luz a ela. Por que sentir inveja e não cobiça? Por que um desenvolve-se e outro nem tanto? É mais fácil invejar do que traçar um sonho? Quanta modéstia. Continuei a correr deixando o vento gelado bater contra o meu rosto e as águas passadas das lagrimas passadas transbordarem pelos meus olhos. Não quero mais sentir esta dor. Não quero mais deixar este vazio crescer, bem no centro do meu peito. Queria poder atingir o limite sem conhecer o desespero. Queria poder ter gloria. E no sexto pecado eu tive. Luxuria e luxo. Lixo! Naquele dia, naquele mesmo local há 50 anos atrás, as mesmas duas pessoas foram tomadas por um desejo que transformou suas almas puras em um pecado delicioso. Mas e agora? Olho a minha volta e sou alguém que esta limitado a ver. Não tenho lhos de quem é capaz de entender. Fui traído pelo pecado mais efêmero de todos.

Fugi mais uma vez. Desta vez, pela última vez. No sétimo pecado sem mais tempo para pedir desculpa ou para pedir para voltar, a gente morreu. Foi lá que você literalmente padeceu. E eu morri junto, bem ao seu lado, deitado e moralmente ensangüentado. IRA. Odiei-me por tê-la deixado partir.

A seriedade nunca foi a minha maior qualidade. Mas rir de tudo, como fazia antes, era agora uma clara demonstração de desespero.

Continuei a correr, a rir e a chorar de aflição. Já não havia mais tempo para voltar atrás. Troquei a xícara de chá fria por um copo de whisky, que bebi até sentir meus lábios dormentes. Parei de fazer fantasia, mas será que parou de fazer mal? Sou então como um velho canal, cheio de beleza e de b... bom, melhor não comentar. Tire suas próprias conclusões. Sou fruto de uma sociedade errante. Por mim, conformo-me.

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concurso de crônicas - academia feminina de letras.
os 100 anos dos canais de santos.

2007

Um comentário:

  1. Nossa eh mtoo bom esse texto
    Eu lembro da epoca q vc ainda tava pensando no q ia escrever pro concurso hauhauh faz teempoooo

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