terça-feira, 4 de novembro de 2008

os detalhes: as canecas de café

eu me lembro, ela havia pegado no sono próximo à janela. não a percebi, mas lembro de tê-la constatado assim sonolenta e pacífica. ela havia me dito que acordaria cedo, e que ela havia sido apenas uma criança nos anos 80 - não entendi em que lugar exatamente essa colocação se encaixava, mas também não a questionei. pensei que talvez não existisse nenhum lugar no mundo para crianças como eu irem ou ficarem - às vezes tenho a sensação de que tudo já está tomado; eu poderia ser revolucionária, e então alguém me diria: já fizeram isso antes, sinto muito.

ela se ajeitou daquela maneira como costumava se ajeitar sempre para tentar dormir. entrelaçava os braços no corpo, como se o contorcesse ou sentisse frio. aposto que ela me deixaria cobri-la com um lençol fino, mas ela dormia tão tranquila e quieta que tive receio de acordá-la. tanta pacificação era massiva e me atordoava. eu precisava fumá-la. torce-la. ou distorcer-me, que fosse. nada havia ficado no lugar: ela simplesmente dormiu e deixou as canecas cheias de café pela metade na pia. eu poderia arranhar as paredes do quarto. eu poderia entregar suas mentiras agora ou acordar sua familia inteira. eu podria publicar os segredos dela como se fossem meus. ela disse que a gente se pertencia de uma maneira estranha, particular. "eu não a conheço", disse. "eu não faço idéia de quem você seja". e ela me olhava planando sobre mim, como se o tempo se encaregasse de nos apresentar em outro momento. eu fiz um silêncio. e ela, como um anjo, encostou-se próximo à janela, à cortina, à pouca luz que tinha e dormiu. ela queria tomar minha única janela. minha única cortina. ela estava ali como se me vigiasse sem me encostar os olhos - e isso me incomodava.

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