quando o tempo o faz sentir assim, meio a mercê do rumo incerto ou do momento impreciso das estações, você imagina se as pessoas realmente mudam muito ou se tão somente existe um medo do inadiável futuro - que se aproxima, ora em forma de avalanche sedutora, ora de assassino cruel. não há muita educação a se ensinar aos homens, é verdade. praticantes de um desleixo instantâneo e gratuito descabido em tempos cuja carência consome as pessoas, como bichos minúsculos que corroem um armário de mogno. não nos coube nenhuma preferência acentuada por nada, que dirá pelo medo irracional que se tem do tempo. também, como poderia? quem puder reger seus próprios ombros sobre o tempo, poderá qualquer coisa também. poderá usar-se de garras amigáveis e de decoro deslumbrante.o tempo age com muita postura diante de nós. e mesmo as desestruturadas e megalomaníacas cidades, que não conhecem nada senão as próprias experiências familiares e nós, que não conhecemos nada do mundo, tampouco de suas engrenagens perfeitamente ilógicas, girando, ao mesmo tempo que tentamos desvendar o menor sinal de padrão ou repetição. eu me esgotei na explicação - na falta de tradução que tanto acontecimento tem. o tempo, mestre das desventuras seriais. e eu achando que a rotina dos dias me poderia massacrar. sendo que, quando penso nisso, no instante em que penso nisso, o tempo já formulou novos planos para mim. tal qual a partida de um jogo, sendo a única certeza possível a perda ou o ganho. os únicos dois pilares possíveis sobre o qual o mundo existe. não existe nem paixão, nem devaneio, nem guerra, solidão, fome, nada. tudo sobre os alicerces únicos do mundo. os opostos perfeitos - a perda e o ganho.
sinto uma dilatação de meus órgãos por debaixo da pele, eles sendo descobertos e repartidos. metades idênticas e facilmente confundíveis. há impossibilidade de saber a qual lado do jogo eu pertenço. pra qual lado da moeda o meu rosto será mostrado. a perda e o ganho. a vitória sobre a fantasiosa sensação de derrota. e a derrota triunfante deitada sobre o corpo da aparente vencedora, irrisória na posição de sossego. a vitória tem um corpo desinteressante, é verdade. e a derrota, uma senhora de mediana idade, sempre esguia, sedutora. não há escritor satisfeito em vida? não foram todos abraçados pelas mãos enormes do pensamento? desperdicei a vida escrevendo? desperdicei a vida me interessando pelas pessoas. cultivei gestos amorosos ou posses descabidas e ciumentas. não sou dona de nada agora. nem mesmo de mim, porque não posso tocar em mim - e somente os olhos tocam.
imagino e, imediatamente, este pensamento horroroso me invade. eu nunca vou poder me ver. e a constatação que, a princípio parece obvia, vai se tornando concreta. eu só sei o que conheço do meu reflexo, do que acredito dele - ou como eu me imagino ser. eu suponho que meus braços tenham este comprimento, que minhas pernas formem estes arcos desconexos logo após o tronco. eu nunca poderei ver meu rosto como você me vê. você imagina o poder que é dado a você com isso? imagine. você sabe mais sobre mim do que eu jamais poderei saber. então, pois que desejar ver a mim mesmo é como supor a morte. não há como saber com certeza nem com verdade. em quanto a verdade o perturba? a verdade é como olhar a si mesmo. fisicamente impossível.
a verdade é o que se conhece como verdade. como palavra que poderia facilmente ser chamada de outra coisa. eu poderia chamar a verdade pelo nome que quisesse. eu poderia dar a ela o nome de um objeto altamente mutável. transferível. poderia chamá-la de mesa, de cadeira, de qualquer coisa. eu poderia dar a verdade o nome de uma mulher bonita ou de uma mulher vadia. eu poderia chamá-la de maria, de olivia, do que quisesse. os nomes não são nada. eu poderia dizer que sou homem, mulher, poderia dizer que tenho qualquer coisa entre as pernas. eu poderia ser qualquer coisa, e fui.
fui reverência de nomes. fui condizente ao impulso. corri desengonçadamente sobre estas pernas de pau - aos quais dei o nome de alicerces. a um deles, dei o nome de ganho - e ao outro, de perda. e para andar é preciso os dois, para mover-se, alternadamente. não são minhas pernas, entenda, nem nunca serão. desconhecidas e impróprias pernas. pernas para onde se vai ao mundo - a vida é assim. cheia de equilibrar-se.
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