segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Me decifras, por isso te devoro.


e você, está curada?

"Eu ainda me lembro, ela ficou procurando pelo meu corpo se eu tinha alguma nova cicatriz. Cicatriz é forma que o tempo encontrou de se tornar concreto, palpável diante dos olhos. Fosse queimadura de panela, arranhão de unha de gato, corte no dedo por folha sulfite, rasgo no joelho, tatuagem inédita. Pouco importava. Na minha cabeça, aquilo representava ou era uma maneira de nos atualizar diante do tempo que tinha passado. Dedicamo-nos a esta busca silenciosa por alguns instantes. Descobrir as cicatrizes físicas do corpo durante o tempo da separação era como ver o quanto tínhamos sofrido e curado na ausência. Porque naquelas porções de pele regenerada, a vida tinha achado uma forma de se reinventar. A vida tinha voltado a ser possível, voltado a crescer apesar das impressões duradouras deixadas pelas ofensas, a ingratidão, a teimosia inevitável e tanta doçura, e tinha achado uma maneira de crescer sobre a ferida e estancar a dor. 

E quanto aos tecidos menos superficiais, quanto àquilo que estava e está o tempo todo sob o verniz da vida atraente, mais embaixo, no mundo das trocas, aquilo que os olhos não vêem apesar do corpo nu, com certeza, pediria mais que toque. Aquilo que o corpo fala ocasionalmente, mas não diz ou não entrega nas palavras logo de cara. Pra saber o quanto realmente havia sido refeito na vida que existia dentro de nós, concluí que seria necessário um pouco mais de tempo; mas diante daquele encontro, eu também quase pude afirmar que havia uma nova disposição, uma facilidade a qual, desta vez, não havia sido preciso forçar nada".

terça-feira, 28 de junho de 2016

o tempo passou. você nunca foi embora.

"the girl with the cat in her eyes"

MEMÓRIAS DE UMA DATA ESPECIAL

a data especial é como bandeira fincada na face da lua. é estrela cadente no olho do furacão. a data emblemática é marco-postal de um encontro revolucionário na estrada de terra por onde se espreme a ordem da vida. indica o dia que aconteceu o que ninguém pode prever, nem atestar. nesta data estão as conversas intermináveis e os diálogos imperfeitos, as primeiras disposições da alma, os recados escritos em guardanapos que vieram depois, também estão lá; na data, está a historia das pessoas que amam inteiro e das que mostram só metade. do amor que desdenha, mas compra. a historia de quem chega ao êxtase. de quem parte do zero. de quem vem com as asas quebradas, a história de quem nunca foi ensinado a voar. a história de quem presenteia com um disco de lançamento, de quem assiste a um show, de quem traz suvenires de uma viagem, de quem canta florence a noite inteira. é a história de quem demora pra se despedir, mas tantas vezes chega atrasado e sem cumprimentar com beijos. de quem bate a porta do carro na briga, pega chaves de volta, de quem se omite na segurança da imaturidade. a data traz a história das paixões que balançam pêndulos dentro do coração, mas são incapazes de garantir entrega na festa na intimidade. a história de casas cheias gatos, de sonhos cheios de planos, de dias cheios de mágoas e de solidões que se ampararam enquanto puderam. a história dos clichês mais óbvios, das terapias mais doloridas, das saudades que estrangulam. essa data é também a história provando que existe amor que falha, mas ama; que o passado é o algoz da memória e a memória é o algoz do futuro; a história  mostrando que impossibilidades não são faltas de amor muitas vezes, mas de jeito. mostra que querer não necessariamente significa possuir capacidade alguma, e que ter poder não quer dizer nada diante da felicidade do outro. a data notória mostra que muito frequentemente as cartas endereçadas não chegam na hora certa, que as palavras nem sempre estão dispostas a aguentar aquilo que quem as escreve está disposto a se propor e que certas coisas não são objeto de contrato. mostra que o tempo passa impaciente e raras são as vezes em que é possível notar isso. essa data mostra que estar apaixonado não é uma condição de passagem, mas de pré-requisito de embarque. mostra que a companhia idealizada não é exemplar como se imagina, e que em todo momento pode-se escolher se isso é sinônimo de humanidade ou de fator insustentável. mostra que o erro vem da imposição com a mesma força que a imposição vem do erro e que essa bandeira cravada na memória é, enfim, como reflexo atrás de todo espelho, um nódulo da própria história de quem a protagoniza; que ela é o marco zero de toda continuidade, o ponteiro da bússola apontando pro norte abstrato, uma singularidade, uma essência inevitável. de nós.

28 de junho 2016

segunda-feira, 2 de maio de 2016

a ideia das bolas de feno



Estou tentando imaginar o que me trouxe até aqui. Tentando tomar conta da dor antes que a dor tome conta da vida. Faz um inverno que me impulsiona a permanecer em repouso, regrada a pequenez deste espaço. Enquanto passa o café, penso que deveria ter enviado aquela mensagem de "bom domingo" meia hora mais cedo. Acontece que sempre achei a prontidão intimidadora e o atraso irritante - e isso me colocava em certo lugar dialético, no centro de um escopo filosófico com o qual eu me sentia sem condições de dialogar. De um lado minha agilidade que se desdobrava com destreza, do outro as delongas das minhas carências que tem apenas a função de importunar quem as recebe. Senti meu peito ficando ligeiramente sem ar e tossi para dentro. Tenho vinte e sete anos e a cada dia aumenta minha sensação de estar distante da vida, mas perto de quem não importa. E neste jogo de palavras que só seduz o negativo, o cético, o derrotista, o chamado das iluminações poéticas passou a ser difícil de ouvir, ainda mais para mim que, justamente agora, nunca tinha me sentido tão sã. Que horror.

O futuro parece que não chega; só o passado que aumenta, como uma bola de feno rolando ladeira abaixo. Ah, as bolas de feno. A ideia do totalmente deserto, do tédio total, da falta de almas vivas de fato, a zona morta - com exceção do possível herói que avista - não me lembro quem nem qual - talvez, eu mesma seja a pessoa quem vê, alguma coisa que está por vir. Mas eu acredito. Porque antes de tudo, vem a crença de que essa coisa sem nome que se aproxima, essa imagem da bolinha inofensiva, tediosa e rolante, quem sabe, seja a mensagem que preciso para rever meus conceitos. Ou posso ignorar e apenas rir da escritora lunática que tento me tornar? Que nasci sem ser? E que acabou restando que eu fosse, bem, apenas eu?

Acho que até mesmo para esta solidão programada, inevitável, em que sou o avarento que conta as horas para ficar só, a rotina que acabou com o amor, lá atrás, agora parece me fazer muito sentido. A rotina acaba com o amor porque ninguém suporta muito a realidade, era isso. E este era também o cerne da dificuldade de tantas relações; a problemática mais básica, a mais rudimentar antes de toda poesia: a urgência de realizar coisas incríveis na contrapartida de proteger o amor sob aparência da normalidade.

É o café coado, a mosca que pousa sobre a casca torrada do pão, é o batom que foge da margem do lábio, a camiseta do Hard Rock Café. Talvez o tédio minimo dos dias seja essa célula-tronco de toda busca. O déjà-vu de uma vida inteira. O mainstream dos apaixonados, dos aborrecidos, daqueles se arrependeram na pressa ou na pausa. Perco o ar, sirvo café. E, no fim, essa imagem da bola de feno é capaz que me salve, porque se aproxima causando em meu coração desestimado o despertar de um cuidado singular, cheio de falha, mas a mesma sensação que tenho quando tomo esse café nesta xícara fina. Incomoda, mas passa. Fico adiante de mim. Fico imaginando o que me trouxe até aqui. E talvez tenha sido simples, na verdade. Dosar para ver a simplicidade - nem que fosse para ver a simplicidade que é a simplicidade do fim do amor. 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

ensaio sobre os apaixonados

"Em um quarto cheio de obras de arte, eu ainda olharia para você."

aos que possam, eventualmente, se interessar, o estado da paixão é aquele em que você nota ter trocado toda embriaguez por alguém. é o embaraço diante da vaidade do outro; é cáustico, mas sóbrio. é desmedido, mas bate nas beiradas, nunca é concreto. nesta hora, acho que nenhuma lembrança seja confiável. a paixão é o verbo que só se conjuga no presente; é o interesse que desconhece distâncias, é o que faz o sujeito sentir-se excepcionalmente romântico. é a complexidade de uma geração inteira. é uma voz sutil em tom grave, é uma martelada constante, britadeira que não para; é o algoz da civilidade, é o debandar de uma manada de búfalos. é também o tropeço que faz cair na tentação do outro fazendo de todo porto inseguro, aluído, capaz de comover cada víscera. é a euforia dos primeiros cinco minutos da briga, é o instante que precede o orgasmo; é o que torna o exemplo menos importante a medida que tudo se torna menos importante; apaixonados são todos aqueles que não dão ouvidos, não seguem conselhos, desconhecem a prudência, estão indiciados ou foram eleitos, e decidem sem reflexão, no âmbito público ou privado; saem às ruas desorganizados, nus, vestidos, travestidos do que permanece mais no avesso do que no peito; são imagens vagas, desconexas; enxergam apenas o ponto geográfico do indivíduo que interessa, o centro, a convergência hipnótica de suas iluminações; são delírios que andam, são os sonhadores na terra da liberdade, os militantes da alegria momentânea; os apaixonados são os peixes fora das águas da normalidade, da chatice que embrutece, das cismas que vão e voltam, de nada a nada. os apaixonados estão no hiato entre o nascimento e a morte, na fenda antidemocrática do sentimento, em todo momento, fora de si.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Azul alguém, azul ninguém

em toda espera cabe uma reflexão.


Na memória de uma noite irregular, é como se tivesse durado um tempo singular também. E se o melhor da festa era esperar por ela, talvez fosse mesmo; pois que prefiro pensar ser só mais uma pessoa num universo, num sistema, uma parte desamparada de uma quadrilha também desamparada. Às vezes, tenho a sensação de que não desejo ninguém. Ninguém para dividir nada, importante ou frívolo, ninguém. Cada ato perde um pouco de propósito no tempo apressurado das relações imediatas, então penso que, caso viva com serenidade e sem luxos, terei apenas que enfrentar a necessidade de existência sob a máscara da normalidade e da extravagância tolerável - o que já seria muito. Ou viver sem incomodar ninguém, sem impor minha presença, ou ir embora sabendo que não deixei nada de especial - pelo contrário, que fiz promessas que nunca me caberiam cumprir, que seduzi como me seduz o abismo da renúncia, que não ofereci a ninguém companhia melhor do que teriam caso estivessem sozinhos. Que fui egoísta, impaciente, e que reproduzi cada miúda implicância que fizeram comigo na cadeia hierárquica e cruel das relações que estive. 

 Eu sei que eu prometo, você promete, toda sorte de disposições. E que na presença concretiza-se os intuitos da espera, o beijo, o sexo, a ideia real de que aquela pessoa existe em dimensão, em toque, é verdade; mas é na distância, na ausência que a rotina obriga a viver, que a ideia de encerrar a espera se torna verdadeiramente interessante. Talvez seja por isso que, do encontro inesperado, é preciso dedicar toda delicadeza de sua atenção depois, toda expressão clara de cuidado, porque a distância esfria, despolariza as intenções, ofusca significados e os sentimentos, inevitavelmente, diminuem ou colapsam. Só se movimenta quem se interessa.