segunda-feira, 28 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 4

O CAPITULO DO PENSAMENTO:

respirou fundo, a resgatar ar de dentro do corpo, exigindo compaixão de si mesma. poderia amar james ali mesmo porque ele esperava pela reação dela. pena para ele, pensava, que segurava um agasalho e uma sacola velha com uma surpresa – ana laura odiava surpresas, mas tinha que admitir a curiosidade e a poesia que a cena trazia até ela. pensava no quanto mais ele poderia falar. diria que era linda, de novo? de novo, seria só isso? perdia o ânimo um pouco. fechou os olhos. tinha um silêncio dela que tinha sido quebrado – e o corpo trincou, rachou quase ao meio como se abrisse uma fenda no tempo, e na distância, e nos poucos passos que a mantinham afastada de james. acontece que a proximidade a qual ele parecia estar o tornava intocável também. ela pensava: entende quando você chega muito perto de alguma coisa, e o olho perde o foco do objeto? o olho dela estava incapaz nesse sentido. depois que o olho voltou ao corpo, os olhares estavam igualmente parados no outro, e brilhantes. o que acontecia era uma combinação, aquela corriqueira felicidade e a descaracterização dos maus modos – e o que era passado poderia ser qualquer coisa também. percebeu que o que tinha acontecido, todos os motivos pelos quais tinham brigado ou desistido agora, desistiam deles. os motivos desmoronavam, os argumentos, as falhas todas postas de lado por um momento. e sabrina flutuava ali por perto deles, mas paralelo a eles. porque sabrina sempre esteve ali, tantas outras mulheres como sabrina existiam – e continuariam a encontrar com eles, sabia disso. sabrina era uma espécie de margem da relação. talvez ana laura que a tivesse colocado ali, à beira – mas a posição já não parecia incômoda mais. porque ela sorria para james com aquele sorriso manso e misterioso, como quem guarda um segredo na urgência do momento de contá-lo. então era ana laura que transpunha o corpo no plano paralelo, de onde o ouvido não tinha ruído nenhum – de cima ela via james e sabrina se abraçarem na rua. sabrina sorria mesmo sabendo que ela sabia de tudo – uma mulher que não tem nada a perder não faz esforços. porque sabrina não tinha dia para morrer. então porque não? porque não james ao invés de qualquer outro homem? acontece que na descrição das mãos dadas, tinha que ser james porque tinha também que ser ana laura. e tinha que ser ana laura de james. ana laura era a melhor candidata. porque a repulsão que ela sentia por ele, gerava – na outra – desejo. a proporção das coisas tinha uma intenção também. e aquelas personagens divididas em centenas de partes minúsculas pulavam de história em história – representando, ou dominando cada uma delas. muitos dos receios de ana laura tinham se transformado em pequenas percepções do instante seguinte. ela teria que saber das possibilidades na espera. foi como se tivesse colocado dezenas de perguntas organizadas em fila, por ordem de tamanho e importância. e os questionamentos exigiam postura dela – uma postura simples e conjunta. porque se james percebesse a fila, pegaria suas metades na rua, como uma mulher que busca o vestido no chão, ergue a saia até o joelho e corre. ela pensava qual imaturidade da condição humana envolvia isso. porque james correria para lados opostos: de um lado a broa quente, do outro, a culpa do fim do relacionamento. por todo o corpo, a omissão que o corpo tinha posto tantas vezes à mostra. e todo aquele sentimento de uma missão não-cumprida; tinham as coisas mal resolvidas ainda. havia vômitos ainda, saídas precipitadas, deixadas de lado por eles. há tempos não pensava sobre isso.

(26 de junho de 2008)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 3

O CAPITULO DA VOLTA DE JAMES:

desejava ir embora. queria ir embora para longe com ele até aquele lugar sereno em que ele se sentia bem. porque agora o efeito do remédio, do chá, do cuidado todo em relação ao resfriado eram necessários. se os defeitos agora a humanizavam, e ela admitia o refúgio. porque ela estava disponível e ele se sentia perdido. já haviam feito aquilo tantas vezes antes, mas dessa vez em particular, não sabia porque beija-la: o desejo tinha perdido significado também. não sabia em que lugar segurar o corpo, nem em que lugar soltá-lo. porque o que lhe ocorria era um desconforto em ralação ao corpo do outro. e ele lhe parecia imóvel: igualmente sem jeito. já havia comentado sobre isso antes, mas não havia recebido nenhum detalhe também. então voltou à mão mais uma vez, como se tivesse ganhado mais um pouco de confiança. estava certa daquilo – e estava certa da CONDIÇÃO que a situação tinha colocado, finalmente. ana Laura passou os braços de james em volta de sua cintura e curvou-se ou pouco para trás enquanto o corpo dele tomava espaço. a proximidade do corpo todo logo tomou o conjunto todo também: as pernas, as juntas as bocas perderam distância na sala. passou a sentir a respiração dele sendo retomada e o ar quente que deixava seu corpo fazia o corpo inteiro dele ganhar calor também. james segurou o corpo dela com força, a fim de não deixa-la perceber que tremia um pouco. ambas as mãos estavam geladas – talvez todo calor já tivesse sido trocado. ana Laura aproximou um pouco o rosto e deixou que uma pequena fenda caísse sobre os lábios. pensou em dizer algo, mas desconhecia a razão daquilo tudo. porque a situação falava por eles. e a situação gritava e imperava por seus corpos juntos, justos, sobrepostos um ao outro. o beijo dele que veio em seguida tomou-lhe a boca em surpresa. talvez não tivesse mais lábios para aquela paixão. o corpo curvou-se mais e ele praticamente a ergueu pelos braços. o corpo dela deixou um suspiro e um respiro longo depois. o fim do encontro das mãos ou do deixar dos olhos no chão tinha acabado – para a entrega do corpo não há reversão. se o amor fosse de fato uma guerra, não lutaria mais. porque tinha largado as forças ali, tinha deixado as forças no outro. fizeram amor como quem faz do amor-próprio um desapego.

james a deitou e em seguida deitou-se sobre ela. seu corpo a cobria como um cobertor, como uma capa pública daquele corpo. o pulso do coração acompanhava um ritmo igualmente descompassado. estavam postos um ao outro. era como se ela tivesse nadado muito, e agora conseguia deitar-se com ele e contemplar. agora poderia abrir os braços na praia, ou flutuar indefinidamente. a alma que emergia do corpo talvez fosse uma onda fina, uma nova onda. a alma era um segmento de conquista do outro. oara James, a boca era o topo do corpo – o gargalo do corpo do outro. estavam deitados feito uma fração – e o que pertencia a ele já não lhe admitia exclusiva posse: e ela se deixava para ele com igual confusão. o que acontecia era que os corpos tinham adquirido uma forma única – e não havia dimensão suficiente para estabelecer o começo do corpo dela e o final do de james. era apenas um par de olhos e de pernas. apenas dois braços e centenas de dedos. apenas eles.

(03 de julho de 2009)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

todos os textos do mundo | 2

O CAPITULO DA FAMILIA DE SABRINA:


os pais de sabrina ainda moravam na mesma casa em que ela e os irmãos tinham sido criados. os mesmos móveis, quadros, sofás e talheres. as mesmas cadeiras, toalhas, sandálias e frigideiras. a mesma árvore do lado de fora, ainda seca e sem frutas. mamãe estava doente desde quando a visitara, no ano passado. sabe-se lá o que tinha, mas o mal deveria estar se arrantando pelos meses e ela parecia estar acostumada aos remédios e a sensação ruim que eles traziam. sabrina evitava voltar para visitá-la - não por mamãe, em si, mas pela falta de graça das lembranças que ainda existiam ao redor da casa. queria trazê-la para se tratar na capital, lógico que queria, mas mamãe se recusava. então sabrina evitava visitas porque assim evitava ser convidada para morar com eles outra vez. se continuasse indo uma vez a cada dois meses, como fazia no começo, eles iriam sugerir para que ela voltasse. e quem insistia era papai - afinal mamãe já mal saía do quarto. papai estava aposentado há oito anos, mas tinha voltado a trabalhar por mais dois quando sabrina resolveu se mudar para a capital. era a única filha, afinal, a única filha menina. os outros poderiam seguir por conta própria, mas sabrina não: ah, não sabrina! sabrina era independente, não exercia profissão nenhuma, fazia a própria comida. nem sempre os pais entendem isso. lavava as próprias roupas, enquanto os irmãos tinham empregados até para dobrar as pontinhas do papel higiênico. esse tipo de hábito era esquisito demais, pensava. jamais conseguiria ter alguém para lhe servir o jantar. não se imaginava jantando com oito tipos diferentes de talheres. gostava de comer alguma coisa na sala, com um pano fino no colo - que ela mesma tinha bordado naquela única aula que tinha feito - e só. então dentro do seu apartamento apenas cabia ela mesma. cabia perfeitamente sabrina e ninguém mais para ficar circulando por ali. bastava james que dormia uma vez e outra. bastava ingrid. bastava os montes de roupas que tinha. então, dentro dela, bastava seu gosto pouco refinado. é, nem sempre os pais entendem isso.

(26 de junho de 2008)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

todos os textos do mundo

O CAPÍTULO DO BAR:

tinha chegado ao limite. tinha chegado ao fim, se é que o fim poderia ter essa cara de cansaço. o espaço do mundo tinha se tornado um espaço muito pequeno para o relacionamento com ele. como uma figura da firmeza, desapontava como uma folha de papel árida, e se esmigalhava seca e sem ar? sem água e sem prazer: já não tinha mais nada. essa cena, da paisagem alienígena, continuou por intermináveis minutos até que ela esticou o braço, sem jeito, para pegar uma bebida. encheu o copo igualmente imóvel de um movimento impróprio, quase a transbordá-lo. o bar ficou vazio e escuro: sobre ela, uma importuna luz do teto já tão baixo a lhe incomodar a cabeça. seria um sofrimento para a personagem esse ato. ana laura apertou os lábios, um contra o outro, e deixou sangrar. tinha vontade de chorar, mas não conseguiu - que importuna virtude, pensou; ainda tinha uma falta de pele, um descompasso da dor: uma ferida de tamanho estranho. lá fora chovia muito, mas ali alagava-se o meio fio. lembrou-se de james. lembrou-se sabrina; inevitavelmente, esqueceu-se. sentiu o peso do corpo agir sobre as pernas, mas as pernas já não pensavam. sentiu-se pateticamente confortável naquele banco duro de bar. ausentou-se: estava por conta própria. estava a se tornar a frase principal de sua poesia preferida. tudo tinha uma valor irrelevante. james parecia estar lá, porque o seu coração pulsava ali e a respiração conseguia se fazer percebida. mas ele não estava lá. nunca esteve. era cansaço, era sono. era isso. ana laura tirou um dolar amassado do bolso, e colocou no balcão sob o copo de cerveja. levantou-se. saiu do bar e não olhou o que tinha ficado atrás. chegou em casa com a calça molhada até a altura dos joelhos, em razão daquele meio fio alagado. o cabelo goetava sobre os ombros, como se tivesse acabado de sair do banho. ironicamente, sentia-se suja, imprestável.

(12 de fevereiro de 2008)

terça-feira, 8 de junho de 2010

à estribeira

A CARTA DE NÚMERO TRÊS:

não que eu não lembrasse mais do seu rosto, mas a beleza sua já não é a mesma de meses atrás. penso que essa nova beleza tenha vindo com a idade mais recente. eu ainda me lembro de você, junto a beleza antiga de quando a conheci, que me mandava sempre, e que me pedia para esperar até essa idade chegar. eu teria esperado, que fique claro. eu teria esperado até este seu aniversário. hoje, a beleza de uma cabelo já tão escuro, de um rosto já tão parte da fadiga - a pretexto do importuna rotina de trabalho que lhe cabe agora - eu me lembro novamente daquele mês cuja beleza sua, já tão confusa em mim, dispensava o sono a trocar por conversas que se jogava fora. a gente sempre espera amanhecer para ir dormir agora? eu imagino quantos costumes foram perdidos nas desfeitas que a gente fez, e às tantas caras feias, a homenagem da perda do sorriso seu em um céu tão lindo que era o seu rosto. eu tenho saudades de escrever para você, de torná-la prosa, de torná-la rima como rima sua eu era, tão sua também do samba que era nosso. e que danças, pode-se lá saber, ficaram perdidas nesse tempo? quanta bossa, quanta valsa sem par, eu imagino. e quanto balançar de ritmo nunca feito, sem letra? eu teria que ter uma história para compor - e recompor para mim, tanta falta sua. tanto me perdi, que procurei você em cada canto a pretexto da intenção de encontrá-la em um assobio, e em uma melodia qualquer retomar o trato que fizemos (de esperar o tempo descuidar do resto). que descuido, penso agora. da imaginação que te trouxe, ao tédio que te fez me visitar outra vez, a curiosidade que tão rápido te atou os braços e te levou longe, em um lugar em que o teu olho já não me permite o brilho. no lugar em que o esforço dos homens quer fazê-la feliz - onde a felicidade não se admite; e, na não existência, insisto em visitá-la sempre. insisto em tornar a casa, em retormar-lhe o desenho do rosto porque você não foi embora. então, talvez, a minha cautela já não se aplique a beleza sua que eu vejo hoje - mas aquela beleza, tão imensamente dilacerada, há de voltar a seus olhos. e eu hei de chamar-lhe sempre até o máximo da minha prematura intenção com o mesmo gostar prematuro que você deixou para mim, meses atrás.