'bloody mary' de maria rubinke |
Acordei
com o coração na mão. Partido, retalhado na metade e escondido por líquido ralo
e opaco, pulsava pouco e sem ordem. Em uma das partes, batia ainda um pouco de
vida, um tipo de soluço ou murmúrio, baixo, com pequenas quantidades de ar na
superfície, borbulhas inflamadas e vermelhas. Logo ao lado, a outra meia
parcela do coração tinha cor mais escura, de ébano, ramificações concretas e
granuladas, imperfeitas como a face da velhice; tomada pela sensação de estar acabando, talvez
senil e fraca, presa ao formato côncavo da cama, sobre a qual resisto e
conservo esta aptidão de sentir vasta mágoa, senti as veias vazias, epidêmicas,
como cordas desatadas pela base de seus nós. Minhas mãos abrigam sem destreza
este músculo atrofiado, mas ainda preso ao meu corpo; sobre meu tronco, há o corte
com início na entrada da garganta que desce até o limite do sexo; meus órgãos,
imergidos no interior rubro do corpo, permanecem quietos, talvez paralisados
pela falta de pulso do coração. Tudo dorme; vagarosamente, ergue-se sobre o perímetro
do colchão a lombar, as costas, os ombros; sento-me da cama, com o que resta da
vida entre meus dedos, olho meu corpo e o vejo no reflexo do espelho da cabeça
até a cintura. Estou tomada por uma excitação sensorial, e triste, transmitida
à medula por via nervosa ou reação motriz referente ao meu espanto de estar diante
de algo tão singular, tão evidente. Hoje meu amor não ama.