terça-feira, 1 de agosto de 2017

O tempo não cura tudo. Aliás, o tempo não cura nada.

Que todo amor extraviado, volte em forma de poesia.

Dor romântica é como doença crônica, não tem cura; repete-se indefinidamente, permanece. Mantém-se ao longo da vida e talvez este seja seu ofício. É espectro pelo qual passa a técnica, toda habilidade de se relacionar. E o que é o relacionamento, se não a arte da correção? A correção posterior a dor aprendida - mas não esquecida - pois frustração amorosa não é amnésica. E nesse meio, o então amor que mutilou, lá atrás ou recentemente, não importa, que arrancou-lhe o coração às pressas, a sangue-frio, foi aquilo que o empenhou a afeiçoar-se de novo e, conseguiu, diante da demonstração de inédito e singular afeto, fazê-lo sentir-se emocionado e não com medo. Sábio organismo que, mesmo sem coração, reconheceu nas novas leis e ritmo do amor recém oferecido, a chance de tornar-lhe sujeito capaz de amar transitoriamente com os pulmões. É, se você já se sentiu capaz de amar com outros órgãos organizados, os rins ou cada víscera, os músculos se contraindo em benefício de afeto novo e incomum que você, ainda portador do côncavo peito, notou ter ressinificado, essa é a sensação de autêntica liberdade da antiga dor. 

O amor não esquece, mas se reinventa, dá outro sentido à consciência da emoção e da imensa capacidade de dedicação que você pode prestar a si e ao outro. Eu não consigo imaginar alguém que nunca perdeu. Quem nunca teve nenhuma perda, não está entre nós. Conheço, ao contrário, porção massiva de gente que parece viver sem ter percebido que perdeu alguma coisa e acaba sem dar-se conta de que já perdeu, nem que tenha sido o dia de ontem. Essas injustiças aterrorizam. É motivo de muita infelicidade essa expectativa que se tem de ser alegre e feliz o tempo todo; porque, se você for capturado por questões mais existenciais, deve procurar um médico - tem-se essa ideia de que a infelicidade é improdutiva. Há algo de politicamente perigoso nisso. Às vezes, a vida mais saudável é a vida absurda, a de uma absurdidade boa. E por isso, o tempo não cura tudo. Não cura nada. O tempo, de maneira exclusiva e sem dificuldade, apenas desloca o incurável centro das atenções para o espaço da ausência do interesse, perímetro distante. Não é a salvação dos ocupados pelas mágoas constantes, dos que idealizam a angústia ou a ludibriam, ou dos que se recusam a senti-la. O tempo faz encarar o diagnóstico de ferido de guerra, sair do delírio, desprender a ação que está amarrada ao dilema de não amar nunca mais: é isso que faz o intelecto forte iluminado pela dor. O coração se reconstruirá mais gentil, acredite. O passado não é mais de jurisdição própria. É só o SAC do nosso futuro. E o presente, bom, este é um pleonasmo. 

terça-feira, 4 de abril de 2017

A ideia do dia eterno

"uma flor que pudesse ser eterna."

Mais um domingo alarmado que perfurou nossa desavisada intimidade. Ao alcance do que pude avistar, alguns vizinhos celebravam uma possível festa de aniversário no anexo do prédio em frente. No sexto andar, duas mulheres mergulhadas nas luzes piscantes do televisor, assistiam a algum usual programa dominical e fumavam cigarros, concentradas, mas com certo aspecto entediado diante dos minutos gratuitos e infinitos característicos deste dia quando se aproxima do final. Mais abaixo, no primeiro andar, um grupo imenso de pessoas, sentado ao redor da mesa circular, formava a típica congregação familiar, com avós, tios e crianças pequenas. Nós, da sacada recém-telada, observávamos, com as mãos pousadas uma na outra, sobre o centro de nossa pequena família nuclear, a lua em fase crescente e o céu manchado de azul marinho abraçar todas aquelas diversas situações de afeto e comparecimento. Olhando pela trama da rede, meio dispersa e flutuante, imagino que nunca houve antes uma circunstância que tivesse me invadido com tanta prontidão de felicidade. Cobicei que este dia pudesse ser eterno. Cuidaria da memória deste dia como quem se dedica ao cuidado de uma flor que se pretende durar para sempre. A memória tem mesmo essas aspirações irrisórias por eternidade.

Os cientistas não teriam conseguido imaginar a ideia do dia eterno, escrito trabalho literário ou perseguido veemente este entendimento mental de que este poderia ser um conceito verdadeiro e autêntico diante dos olhos: o dia aleatório de nossa própria escolha e, porventura, sem alicerces conscientes, que decidimos fazer durar sem fim na lembrança.

Conforme ela falava, sentia suas palavras e elas tinham gosto de café. Nossa convivência, tão protegida pela aparência da banalidade naquele instante, era para mim como um raio de sol que escapa da nuvem em dia enevoado. Meu ritual de iniciação. Sua existência me validava de forma positiva, me atestava em presença, em testemunho diante da vida, sem desafetos. Acredito que, num tempo muito breve, superei quase que completamente o meu medo - que era o de ela não existir. Senti minha sensibilidade perder as rédeas do próprio governo. Uma anarquia sentimental esclarecedora e precisa. "Ganhei na loteria sozinha", pensei.

Foi durante este estreito trilho por onde a babel de sentimentos se espremia para caber e passar, que pude ainda me dar conta de que, mesmo no caos, existe certo algorítimo organizado. Pela primeira vez, reconheço minha intenção e sinto que sou capaz de dar conta do desejo. Nem tudo são dores - mesmo em paráfrase dos ditados mais populares. Como era ousado diante do meu acanhamento permanecer ao seu lado. Senti a cidade como uma palma. Passei a querer dispersar a morte de toda forma possível. A vida enorme se aproximava, tirando da sugestão ambiciosa da morte a sensação que rondava este domingo sem precedente que estava absolutamente fora do tempo e do devir. Os amantes precisariam ser cuidadosos nestes intermináveis primeiros dias e talvez nós fossemos mesmo; um cuidado misterioso e fascinante e que movimentava a vida adormecida como se movimentam as partículas de água diante do estímulo da temperatura.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

As mãos

"o grande rio" (1990) | nanquim sobre papel de leonilson.


O corpo me lembra algo que já desejei, mas não sei exatamente o quê. Talvez a textura da pele ou da palma da mão. É, as mãos são tão únicas. São conexões. Uma mulher com as mãos cheias de vincos e veias saltando do plano rasteiro da pele, conforme gesticula ao falar. Dediquei silencioso tempo a reparar em cada dobra e, ainda assim, penso ter deixado escapar algum detalhe essencial ou vertiginoso, talvez, ali onde as unhas curtas aparadas a beira da ponta dos dedos, alguns ligeiramente tortos, nada absurdo, mas longos também sem exagero ou falta de proporção, se encontram formando uma imagem quase familiar, acentuando a ideia de que há algo nela que já conheço. Penso como pude não ter reparado nessas mãos semanas atrás, quando nos encontramos na porta do concerto. Talvez estivesse rodeada de maneirismo, e nada veio ao encontro, à dimensão visível. Acho que só se pode ter a atenção lapidada, com todos os elementos necessários, depois de algum tipo de autorização prévia ao toque, mas posterior a tomada da consciência, porque, assim, a ideia da mão se torna a mão tocada por mim, concreta, passível de descrição; enquanto a mão que não foi tocada é como corpo celeste vagueando no espaço, é autentica, mas não pertence a ninguém, a não ser a si mesma, não faz parte de história alguma, é como se estivesse perdida, não tem ligação efetiva com a realidade, não existe no plano da importância, pro outro - é somente subsidente, perdura, na ordem etérea da imaginação, sem vínculos. E o que seria de nós sem a expectativa da continuidade, nessas horas, em que sinto através de uma percepção quase intuitiva que de longe pareço normal, e de perto, pareço distante. E nesta fina lacuna, em que observo o passar dos dias com os olhos mareados, o corpo tenta deslocar-se, ainda que na direção de tais ásperas mãos, cujo embate ainda não sei se vem como roubo ou maravilha. No futuro, sei que há de tudo dar certo, quando menos se desespera.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Sobre uma epifania matinal qualquer

"my yesterday was blue, dear".

Observo o café passar e percebo que minha memória não é capaz de trazer à lembrança a quantidade de colheres de pó que coloquei no dia anterior. Basta que decida por três e acho que deveria ter colocado duas; se decido por duas já percebo uma sensação que me afronta, o resultado inevitável de uma bebida fraca que será meu destino naquela manhã que me deprecia por antecipação, sem energia moral, sem firmeza. Não confio em que aceita café ralo. Bato os pés e sinto uma tosse para dentro. Mal passa das sete; e diante desta evasiva alegação, a pretexto não se sabe muito bem de quê, provoco o surgimento da ideia construída a partir de nada, por geração espontânea - como religião ao afirmar a existência de um deus, e dizer que ele é homem, imagine - e que faz com que, por deleite e comoção, o café diferente se torne algo como o café único; é uma iluminação. eu paro. ele é exclusivo, penso, é privilegiado, o café possível, e que constrói uma memória também ímpar mesmo que sem muito intuito de se firmar. O primeiro gole me faz lembrar com mais clareza, os seguintes, dão certa visão distinta e penetrante das coisas que não apresentam precedente, tampouco, se repetirão e, assim, todos os dias, nessa ausência aparente de ordem, sei dos instantes em que ele esteve perfeito, dos dias em que parecia anêmico (e detesto), daqueles em que não passava de uma espécie de intragável tinta preta; percebo, hesitantemente, que essa mudança periódica dentro da rotina pragmática deixa a realidade menos espessa, faz dela digerível, algo com o que posso conviver e que me agrada, e atesta do jeito mais modesto que talvez possa existir que nenhum dia, nunca, em nenhuma circunstância pode ser igual ao anterior. and that's ok.