quarta-feira, 14 de março de 2012

cartas marítimas | 5

fildsville, 05 de março de 2022.

querida maria paula,

devo notar a maturidade de sua literatura, antes que lhe possa contar qualquer coisa destes dias aqui. essas palavras se construíram de outra forma em você? vejo-a verdadeiramente à vontade e isso foi lindo quando li. de um pouco de fúria e de muito ter estado dentro de copos de bebida e ou de desleixo simplesmente, consegui responder a ti, ainda que com essas semanas de ausência também. talvez a vida seja um constante conflito de admirar paixões e desprezá-las. e neste ponto, então, que penso na contemporaneidade de seu texto, nesses naufrágios indócis que a vida nos faz contemplar. e é interessante ver como, junto a ele, vejo você retomar uma literatura quase incorrigível. sinto sincera falta de nossas conversas também - talvez da mesma maneira como tenha nutrido um dó desses personagens, nada se perdeu.

'morri anunciadamente', como você disse na carta , uma morte bastante dolorida e  rápida. não se pode ficar ao luxo da beira da morte por muito tempo, nesses tempos em que desfilam tantas impertinências ao nosso redor. sabrina foi embora, mas retornou de outra forma. mais educada e esguia, um pouco mais magra também. acho que se eu ainda queria me apaixonar, era de se esperar que ela também quisesse sair em algum momento. nada mudou muito, mas, de algum estranho jeito, tudo está transformado. quanto a minha idade, é provável que eu volte a brigar com ela em breve. quando tive vinte, quis ter quarenta, quando tive quarenta, quis ter vinte outra vez. e agora, com estes tantos dias nas costas, talvez eu quisesse ter perdido um pouco a memória de algumas coisas - e isso em nada tem relação com a idade. quantos anos você daria para você hoje, minha amiga? às vezes eu já não sei mais se fiz sexo ou se só tomei um café.


quero muito voltar ao brasil. acho que vê-los será de grande alegria para mim. será que ainda poderemos frequentar os mesmos lugares de antes? fumar cigarros nas mesmas praças? faz tanto tempo que estive aí!  mas imagino que mesmo dentro de sua impossibilidade de caminhar durante esse período depois da cirurgia tenha sido de grande influencia sobre a literatura que me mandou.  santos sempre esteve como uma moldura sua para mim, você lembra quando falávamos sobre isso? agora, contudo, sinto você e este contexto independentes - ainda que haja em suas palavras tanta felicidade honorária. foi em santos que cresci, então pensei em levar uma cesta com damascos frescos e lanches, passaríamos o dia na praia - mas deixarei os biquínis em casa, dizem que os velhos começam a ir de roupa a praia depois de certa idade - levarei rascunhos para as ideias e nenhuma pressa. 


tenho escrito uma autobiografia um pouco saturada, talvez porque sabrina conseguiu desconstruir a figura literária que tinha dela. estou voltando a construí-la, aos poucos, voltando a fazer dela uma ficção vital da minha realidade aqui. tudo tem sido muito silencioso e contido. mas ela é uma nova mulher agora. encontramos um vilarejo aqui perto, há umas vinte milhas de fildsville. eles tem um café brasileiro delicioso - e é sobre esta simpatia do brasil que sabrina e eu voltaremos a existir.  tive que retomar a malemolência da paixão, mesmo que tivesse tido robusta vontade de esquecê-la.


vejo, então, que suas pernas a levarão a muitos lugares com este novo romance - e ainda mais vontade de ir e vir, da imaginação levar e trazer. a ideia do suicídio é consoladora, como disse nietzsche, e também o mais próximo que se pode chegar do sumiço. quem vai embora já não se pergunta sobre nada, os mortos já não tem opinião, não é mesmo? portanto, que venham tempos bons, e nesses naufrágios tão inacreditavelmente frágeis, sua nau faça oceanos inteiros por onde passar. mande notícias do casal. noticias suas, de pedro. deixe que eles falem por você - nesse mundo louco em que as pessoas pagam para conversar. você é privilegiada.

saudades igualmente grandes
de coisas cotidianas.

um beijo, ana.

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