segunda-feira, 21 de julho de 2014

As confissões de James

Já não estou mais cheio de mim, Ana. Mas repleto de nós – mesmo que nós já não sejamos mais eu e você. Acho que não terei tempo em vida de cuidar de suas flores. E quanto a Sabrina, não se preocupe, porque ela não vai me proteger. Mas este seu apartamento foi e sempre será uma cabine no meio do mundo em que eu, você e ela fizemos arte, amor e guerra. Porque Sabrina fez desse apartamento um albergue europeu, e nesse seu pedaço de mundo ela ora me aspira, ora me consola. Eu vim aqui para te perder. E agora a morte é isso?

JAMES
Limite: foi nisso que eu fiquei pensando. Eis uma linha fina que marca o fim de uma extensão. O limite é sempre comum aos dois, sobre o qual pessoas ora se deitam, ora se estranham. E nesse mesmo lugar, tem o costume de se sentirem constantemente invadidas: o limite é isso. O lugar em que as pessoas exigem, mesmo que elas não possam se equilibrar sobre ele, o lugar de confessar.

Eu me sentia como uma espécie de termo incapaz de produzir ação e de fazer reverberar efeitos. Nunca fui influência, ou talvez nunca tivesse me imaginado assim. Ao pensar no limite e nas fronteiras que existem, eu me via como preso a uma eterna elasticidade. Acontece que não é isso que a vida me causou. Foram as relações que tive. Eu fui um homem para além da minha carga, protocolado em ataques e acusações - e, por isso, essas deformações causadas por Ana e Sabrina se tornaram permanentes e perigosas.

É para isso que as pessoas escrevem? Deve ser por isso que Ana se apaixona. Hoje, como há muito tempo não, eu sinto não completar a mim. Mutilado ou apenas imperfeito, sei que, hoje, é completamente possível romper um relacionamento comigo. A minha garganta inflama, flameja – e mesmo que não seja para tanto, às vezes eu me sinto morrer por muito pouco (e quem morre por pouco, por pouco não vive).

É tão horrível a sensação irremediável de magoar as pessoas que gostamos quanto é horrível controlar as pessoas que não entendemos. Houve dias em que vi Ana como uma menina cujo meu cuidado poderia se deitar facilmente sobre ela, da mesma maneira como eu me via nela, eu já tinha me apaixonado por ela – em outra vida, em algum outro lugar. Em certos momentos sentia uma ligação com ela, uma verdade integral entre nós. Acontece que não há desistências para tanto, nem insistências para tão pouco. Sabrina não se apaixonou por Ana como eu, mas por tudo que ela não mostrou, construiu uma paixão alegórica que a servia. Quantas transas nos envolveram esses últimos dez anos? Ah, eu enlouqueceria.

Eu me lembro perfeitamente de ela, Ana, ter dito que me via com olhos de gato – porque foi assim que ela me fez personagem. Em um momento eu era um homem de barbas e dimensões. No outro, eu estava espremido em uma folha de papel. Porque escrever sobre alguém que se gosta é como uma tentativa de fazer com que a pessoa esteja em uma eterna disponibilidade irrisória, na qual ela é lida e lembrada, mesmo que já não tenha matéria nenhuma, nenhum peso. Acho que as pessoas se apaixonam quando menos esperam. E talvez eu também estivesse a não esperar, como quem assume o risco de entrar no mar quando chove.

Todo sexo será impossível se não houver nudez, cada vez mais eu me atentava a isso – pois que as pessoas tiram as roupas para dar lugar aos pequenos espaços em que o espírito respira. Foi por isso que eu quis morrer nu. Para que o meu espírito pudesse dar um ultimo suspiro – não para que eu pudesse voltar a vida – mas para que eu pudesse sentir que não fui apenas um homem doente e apaixonado. Porque a gente simplesmente sabe quando não mata mais a fome de alguém. A vida são memórias – e as memórias que deixei para elas foram como as minhas opiniões sobre tudo que conheci em vida. Nunca visitei Istambul. Mas fui a Nova Iorque nos olhos de Ana, e aos albergues europeus nas mãos de Sabrina. Os homens sempre estarão doentes e as mulheres sempre estarão incríveis. Hoje existe um desenho imaginário que une as pessoas – curiosamente, é o mesmo que as separa. O limite.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Ao labirinto fugaz da memória

o amor é aquilo que nos oferece um novelo de lã no labirinto [*]

Noventa dias passam em um único piscar de olhos. Noventa dias: período de experiência definitiva do fim do amor. Momento em que volta a outorgar a ideia irrisória do descarte. Será que acontece igual para todo mundo? Esta ideia de encontrar-se livre de algo cai com tanta facilidade que é possível usá-la sem proeminência de julgamentos... sem culpa mesmo. Embora haja sempre ressalvas sobre estas omissões negligentes que atribuímos à falta do outro, a memória é um labirinto que instiga o enamorado: não é à toa que, neste dédalo em que se vigila as lembranças, residam tantas confusões mentais.

Acredito que, raramente, o amor aconteça em algum pano de fundo político ou palco aristocrático através dos quais nós, por impulso natural, acabamos por atribuir o fracasso da guerra. Há pouca lógica sobre a qual se apoiar neste cenário. 

Este labirinto que percorremos ora certeiros, ora marginalizados, não traz nada além da desilusão do fracasso. É frustrante estar apaixonado por alguém que decide esquecê-lo; e tanto a memória quanto o passado têm a função de nos humanizar – acontece que, nos corredores de nossa própria cabeça, onde tudo é, antes de qualquer coisa e principalmente, uma história de amor, parece ser inofensivo tentar apagar o que ficou gravado no coração. 

Pois que falar de esquecimento nada mais é que falar sobre a necessidade substancial de ser lembrado; e estamos todos do avesso quando se trata das mazelas do amor. Por isso talvez, seja tão difícil indicar com precisão a causa de um mal nesta sucessão de acontecimentos desorientados, em que os amantes enfrentam o eterno problema de simplesmente se darem bem. Amores são exigentes. 

Fundadas ou supostas, é certo que estas exigências fazem com que a memória acesse diversos corredores deste conjunto de percursos cuja intenção é apenas a de desorientar quem os percorre. Imagine uma lembrança sendo puxada de você como uma corda que se desenrola janela abaixo? E então, a sensação tão próxima, tão real, de que, a qualquer momento, pode-se cruzar com o monstro outro vez? Toda desconfiança nos arrasta a um delírio.

Então, é no centro destas paredes erguidas com tanto esmero que o minotauro dos romances permanece intacto; e toda manipulação tenta dissolver-se. Lendário, histórico, verossímil: não importa. A criatura mítica decorrente de um amor não-natural só agrava o risco de sermos devorados e, aprisionada por suas características metade humanas, metade animais, permanece como uma placa luminosa que contesta justamente nosso juízo mais atroz e definitivo: sofrer por amor ainda é preciso? 


[*] Antigo conto grego: "O mito do Minotauro".